Aumenta a onda de refugiados ambientais
Por Lester Brown*
Washington, 23/10/2009 – A civilização do início do século XXI está encurralada entre o avanço dos desertos e a elevação do nível do mar. Se considerarmos a superfície de terras biologicamente produtivas habitáveis por comunidades humanas, a Terra está encolhendo. O aumento da densidade demográfica, antes causada apenas pelo crescimento da população, agora também é alimentado pelo implacável avanço dos desertos, e logo poderá ser afetado pelo aumento previsto do nível do mar. Na medida em que a extração excessiva esgota as reservas aquíferas, milhões mais se veem forçados a se reassentar em busca de água.
A expansão do deserto na África subsaariana, principalmente nos países do Sahel, causa o deslocamento de milhões de pessoas, obrigando-as a seguirem para o sul ou emigrarem para a África do norte. Já em 2006, uma conferência da Organização das Nações Unidas sobre desertificação realizada em Túnis estimou que para 2020 até 60 milhões de pessoas poderão emigrar da África subsaariana para a África setentrional e a Europa. Este fluxo está em curso há muitos anos.
Em meados de outubro de 2003, as autoridades da Itália descobriram um barco que se dirigia a esse país transportando refugiados procedentes da África. A embarcação esteve à deriva mais de duas semanas, ficou sem combustível, alimentos e água. Muitos dos passageiros morreram. No começo, os cadáveres foram jogados na água. Mas, após algum tempo, os sobreviventes ficaram sem forças para levantar os corpos. Deste modo, vivos e mortos compartilharam o bote. Um socorrista descreveu o que viu como “uma cena do inferno de Dante” Alighieri.
Acredita-se que os refugiados eram somalianos embarcados na Líbia. Mas os sobreviventes não revelaram seu país de origem para não serem enviados de volta. Ignora-se se eram refugiados políticos, econômicos ou ambientais. Estados falidos como a Somália expulsão sua população por causa desses três fatores. Ali há um desastre ecológico, com excesso de população, excesso de pastoreio e, como consequência, uma desertificação que destrói sua economia pastoril. Talvez o maior fluxo de emigrantes somalianos se dirija para o Iêmen, outro Estado falido. Estima-se que em2008 foram 50 mil os migrantes e solicitantes de asilo que chegaram a esse país, 70% mais do que em 2007.
E durante os primeiros três meses de 2009, o fluxo migratório foi até 30% superior ao de igual período do ano passado. Estes números simplesmente se somam às pressões já insustentáveis sobre a terra e os recursos hídricos do Iêmen, acelerando seu declive. No dia 30 de abril de 2006, um homem que pescava nas águas de Barbados descobriu um bote à deriva com os cadáveres de 11 homens jovens “Praticamente mumificados” pelo sol e pelo sal do oceano Atlântico.
Ao aproximar-se o fim, um passageiro deixou um bilhete entre os corpos: “Gostaria de enviar dinheiro para minha família em Basada (Senegal). Por favor, me perdoem e adeus”. Aparentemente, seu autor integrava um grupo de 52 pessoas que partiram desse país africano às vésperas do Natal em um bote com destino às ilhas Canárias, ponto usado como trampolim para a Europa. Devem ter viajado cerca de 3.200 quilômetros. A travessia terminou no mar do Caribe. Este barco não foi o único, durante o primeiro fim de semana de setembro de 2006, a polícia interceptou botes da Mauritânia com quase 1.200 pessoas a bordo.
Para muitos moradores de países da América Central, incluídos Honduras, Guatemala, Nicarágua e El Salvador, o México costuma ser a porta de entrada para os Estados Unidos. Em 2008, as autoridades mexicanas de imigração registraram 39 mil detenções e 89 mil deportações. Na cidade de Tapachula, na fronteira entre Guatemala e México, homens jovens em busca de trabalho esperam ao longo das vias férreas um lento trem de carga que atravessa a cidade em sua rota para o norte. Alguns conseguem subir, outros não.
O abrigo Jesús, o Bom Pastor abriga 25 amputados que perderam o equilíbrio e caíram sob um trem quando tentavam abordá-lo. Para esses jovens, “este é o fim de seu sonho americano”, disse a diretora do abrigo, Olga Sánchez Martinez. Outra voluntária dessa instituição, Flor Maria Rigoni, qualificou os emigrantes que tentam subir nos três de “kamikazes da pobreza”. Hoje é comum encontrar cadáveres nos litorais de Itália, Espanha e Turquia. São cadáveres de migrantes desesperados.
A cada dia, muitos mexicanos arriscam a vida no deserto do Arizona, tentando conseguir trabalho nos Estados Unidos. Em média, cerca de cem mil, ou mais, abandonam anualmente suas áreas rurais, onde aram terras muito pequenas ou muito afetadas pela erosão para que possam obter seu sustento. Dirigem-se a cidades mexicanas ou tentam cruzar ilegalmente a fronteira para os Estados Unidos. Muitos dos que tentam atravessar o deserto do Arizona morrem sob o sol abrasador. Desde 2001, a cada ano são encontrados, em média, 200 cadáveres ao longo da fronteira do Estado do Arizona.
Com a vasta maioria dos 2,4 bilhões de pessoas que se somarão ao mundo até 2050 nascendo em países onde os lençóis freáticos já estão diminuindo, é provável que os refugiados hídricos se tornem um fenômeno comum. Serão encontrados mais comumente em regiões áridas e semi-áridas, cuja população esgota o fornecimento de água e afunda na pobreza hidrológica. As aldeias do noroeste da Índia são abandonadas na medida em que esses lençóis de água se esgotam e a população já não tem como se abastecer. Milhões de moradores do norte e do ocidente da China e de certas áreas do México podem ter de se deslocar devido à falta desse líquido.
O avanço dos desertos encurrala as populações em expansão em uma área geográfica menor do que nunca. Nos anos 30, as tempestades de areia deslocaram três milhões de pessoas nos Estados Unidos. Agora, o deserto que avança nas províncias chinesas afetadas por um fenômeno semelhante pode expulsar dezenas de milhões. A África também sofre este problema. O deserto do Saara empurra as populações de Marrocos, Túnis e Argélia para o norte, em direção ao mar Mediterrâneo. Em um esforço desesperado para adaptar a agricultura à seca e à desertificação, o Marrocos reestrutura o setor com base em estudos geográficos, substituindo os cultivos de cereais por vinhas e hortas que usam menos água.
No Irã, as aldeias despovoadas por culpa do avanço dos desertos ou pela falta de água já são milhares. Nas proximidades de Damavand, pequeno povoado a uma hora de carro de Teerã, 88 aldeias foram abandonadas. E na medida em que o deserto se apodera do território da Nigéria, os produtores agropecuários se veem obrigados a se mudar, apertados em uma área cada vez menor de terra produtiva. Os refugiados devido à desertificação costumam acabar em cidades, e muitos em assentamentos ilegais. Outros emigram.
Na América Latina, os desertos se expandem e obrigam as pessoas a se instalar no Brasil e no México. O fenômeno no Brasil afeta 66 milhões de hectares de terras, em boa parte concentradas no noroeste do país. No México, com uma cota muito maior de terras áridas e semi-áridas, a degradação da terra agrícola agora se estende a 59 milhões de hectares. A expansão do deserto e a escassez de água causam o deslocamento de milhões de pessoas, mas a elevação dos mares promete expulsar muitas mais no futuro, devido à concentração da população mundial em cidades costeiras e em deltas de rios onde se cultiva arroz.
Os números podem chegar a centenas de milhões, oferecendo outra poderosa razão para estabilizar tanto o clima quanto a população. No final, a dúvida que desperta a elevação do nível do mar é se os governos são suficientemente fortes para suportar a pressão política e econômica de reassentar contingentes de população na medida em que os países sofrem fortes perdas de casas e fábricas no litoral. A opção parece simples: reverter estes problemas ou deixar-se superar por eles. IPS/Envolverde
* Lester R. Brown é fundador do Earth Policy Institute. Este artigo é uma adaptação do Capitulo 2 de seu livro “Plan B 4.0: Mobilizing to save civilization” (Plano B 4.0: Mobilizando-se para salvar a civilização), Nova York: W.W. Norton & Company 2009, desnível no site www.earthpolicy.org/index.php?/books/pb
(Envolverde/IPS)
Por Lester Brown*
Washington, 23/10/2009 – A civilização do início do século XXI está encurralada entre o avanço dos desertos e a elevação do nível do mar. Se considerarmos a superfície de terras biologicamente produtivas habitáveis por comunidades humanas, a Terra está encolhendo. O aumento da densidade demográfica, antes causada apenas pelo crescimento da população, agora também é alimentado pelo implacável avanço dos desertos, e logo poderá ser afetado pelo aumento previsto do nível do mar. Na medida em que a extração excessiva esgota as reservas aquíferas, milhões mais se veem forçados a se reassentar em busca de água.
A expansão do deserto na África subsaariana, principalmente nos países do Sahel, causa o deslocamento de milhões de pessoas, obrigando-as a seguirem para o sul ou emigrarem para a África do norte. Já em 2006, uma conferência da Organização das Nações Unidas sobre desertificação realizada em Túnis estimou que para 2020 até 60 milhões de pessoas poderão emigrar da África subsaariana para a África setentrional e a Europa. Este fluxo está em curso há muitos anos.
Em meados de outubro de 2003, as autoridades da Itália descobriram um barco que se dirigia a esse país transportando refugiados procedentes da África. A embarcação esteve à deriva mais de duas semanas, ficou sem combustível, alimentos e água. Muitos dos passageiros morreram. No começo, os cadáveres foram jogados na água. Mas, após algum tempo, os sobreviventes ficaram sem forças para levantar os corpos. Deste modo, vivos e mortos compartilharam o bote. Um socorrista descreveu o que viu como “uma cena do inferno de Dante” Alighieri.
Acredita-se que os refugiados eram somalianos embarcados na Líbia. Mas os sobreviventes não revelaram seu país de origem para não serem enviados de volta. Ignora-se se eram refugiados políticos, econômicos ou ambientais. Estados falidos como a Somália expulsão sua população por causa desses três fatores. Ali há um desastre ecológico, com excesso de população, excesso de pastoreio e, como consequência, uma desertificação que destrói sua economia pastoril. Talvez o maior fluxo de emigrantes somalianos se dirija para o Iêmen, outro Estado falido. Estima-se que em2008 foram 50 mil os migrantes e solicitantes de asilo que chegaram a esse país, 70% mais do que em 2007.
E durante os primeiros três meses de 2009, o fluxo migratório foi até 30% superior ao de igual período do ano passado. Estes números simplesmente se somam às pressões já insustentáveis sobre a terra e os recursos hídricos do Iêmen, acelerando seu declive. No dia 30 de abril de 2006, um homem que pescava nas águas de Barbados descobriu um bote à deriva com os cadáveres de 11 homens jovens “Praticamente mumificados” pelo sol e pelo sal do oceano Atlântico.
Ao aproximar-se o fim, um passageiro deixou um bilhete entre os corpos: “Gostaria de enviar dinheiro para minha família em Basada (Senegal). Por favor, me perdoem e adeus”. Aparentemente, seu autor integrava um grupo de 52 pessoas que partiram desse país africano às vésperas do Natal em um bote com destino às ilhas Canárias, ponto usado como trampolim para a Europa. Devem ter viajado cerca de 3.200 quilômetros. A travessia terminou no mar do Caribe. Este barco não foi o único, durante o primeiro fim de semana de setembro de 2006, a polícia interceptou botes da Mauritânia com quase 1.200 pessoas a bordo.
Para muitos moradores de países da América Central, incluídos Honduras, Guatemala, Nicarágua e El Salvador, o México costuma ser a porta de entrada para os Estados Unidos. Em 2008, as autoridades mexicanas de imigração registraram 39 mil detenções e 89 mil deportações. Na cidade de Tapachula, na fronteira entre Guatemala e México, homens jovens em busca de trabalho esperam ao longo das vias férreas um lento trem de carga que atravessa a cidade em sua rota para o norte. Alguns conseguem subir, outros não.
O abrigo Jesús, o Bom Pastor abriga 25 amputados que perderam o equilíbrio e caíram sob um trem quando tentavam abordá-lo. Para esses jovens, “este é o fim de seu sonho americano”, disse a diretora do abrigo, Olga Sánchez Martinez. Outra voluntária dessa instituição, Flor Maria Rigoni, qualificou os emigrantes que tentam subir nos três de “kamikazes da pobreza”. Hoje é comum encontrar cadáveres nos litorais de Itália, Espanha e Turquia. São cadáveres de migrantes desesperados.
A cada dia, muitos mexicanos arriscam a vida no deserto do Arizona, tentando conseguir trabalho nos Estados Unidos. Em média, cerca de cem mil, ou mais, abandonam anualmente suas áreas rurais, onde aram terras muito pequenas ou muito afetadas pela erosão para que possam obter seu sustento. Dirigem-se a cidades mexicanas ou tentam cruzar ilegalmente a fronteira para os Estados Unidos. Muitos dos que tentam atravessar o deserto do Arizona morrem sob o sol abrasador. Desde 2001, a cada ano são encontrados, em média, 200 cadáveres ao longo da fronteira do Estado do Arizona.
Com a vasta maioria dos 2,4 bilhões de pessoas que se somarão ao mundo até 2050 nascendo em países onde os lençóis freáticos já estão diminuindo, é provável que os refugiados hídricos se tornem um fenômeno comum. Serão encontrados mais comumente em regiões áridas e semi-áridas, cuja população esgota o fornecimento de água e afunda na pobreza hidrológica. As aldeias do noroeste da Índia são abandonadas na medida em que esses lençóis de água se esgotam e a população já não tem como se abastecer. Milhões de moradores do norte e do ocidente da China e de certas áreas do México podem ter de se deslocar devido à falta desse líquido.
O avanço dos desertos encurrala as populações em expansão em uma área geográfica menor do que nunca. Nos anos 30, as tempestades de areia deslocaram três milhões de pessoas nos Estados Unidos. Agora, o deserto que avança nas províncias chinesas afetadas por um fenômeno semelhante pode expulsar dezenas de milhões. A África também sofre este problema. O deserto do Saara empurra as populações de Marrocos, Túnis e Argélia para o norte, em direção ao mar Mediterrâneo. Em um esforço desesperado para adaptar a agricultura à seca e à desertificação, o Marrocos reestrutura o setor com base em estudos geográficos, substituindo os cultivos de cereais por vinhas e hortas que usam menos água.
No Irã, as aldeias despovoadas por culpa do avanço dos desertos ou pela falta de água já são milhares. Nas proximidades de Damavand, pequeno povoado a uma hora de carro de Teerã, 88 aldeias foram abandonadas. E na medida em que o deserto se apodera do território da Nigéria, os produtores agropecuários se veem obrigados a se mudar, apertados em uma área cada vez menor de terra produtiva. Os refugiados devido à desertificação costumam acabar em cidades, e muitos em assentamentos ilegais. Outros emigram.
Na América Latina, os desertos se expandem e obrigam as pessoas a se instalar no Brasil e no México. O fenômeno no Brasil afeta 66 milhões de hectares de terras, em boa parte concentradas no noroeste do país. No México, com uma cota muito maior de terras áridas e semi-áridas, a degradação da terra agrícola agora se estende a 59 milhões de hectares. A expansão do deserto e a escassez de água causam o deslocamento de milhões de pessoas, mas a elevação dos mares promete expulsar muitas mais no futuro, devido à concentração da população mundial em cidades costeiras e em deltas de rios onde se cultiva arroz.
Os números podem chegar a centenas de milhões, oferecendo outra poderosa razão para estabilizar tanto o clima quanto a população. No final, a dúvida que desperta a elevação do nível do mar é se os governos são suficientemente fortes para suportar a pressão política e econômica de reassentar contingentes de população na medida em que os países sofrem fortes perdas de casas e fábricas no litoral. A opção parece simples: reverter estes problemas ou deixar-se superar por eles. IPS/Envolverde
* Lester R. Brown é fundador do Earth Policy Institute. Este artigo é uma adaptação do Capitulo 2 de seu livro “Plan B 4.0: Mobilizing to save civilization” (Plano B 4.0: Mobilizando-se para salvar a civilização), Nova York: W.W. Norton & Company 2009, desnível no site www.earthpolicy.org/index.php?/books/pb
(Envolverde/IPS)
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