quinta-feira, 12 de junho de 2008

120 anos de Fernando Pessoa


Subitamente compreendemos / que as palavras envelhecem com os homens.»
(Francisco Carvalho) *


Fernando Pessoa (estátua em Lisboa, no Chiado)
Caros amigos,

Este é um boletim especial. É a edição n. 250 do poesia.net — duas centenas e meia de boletins! — e coincide com os 120 anos do nascimento do poeta Fernando Pessoa, comemorado em 13 de junho, dia de Santo Antônio, que deu nome a Fernando António Nogueira Pessoa, nascido em Lisboa no ano da graça de 1888.

Fernando Pessoa era um homem só, mas em pessoas múltiplas. Além dele mesmo, carregava consigo uma pequena multidão: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e vários outros menos importantes. Personalidades diferentes. Todos escritores.

O próprio Pessoa fazia questão de destacar: não eram meros pseudônimos, mas heterônimos. Ou seja, diferentes pessoas dentro do mesmo poeta. Escreveu ele: "Construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria".

E, como pessoas independentes, os heterônimos tinham biografia, horóscopo e descrição física. Aqui vão alguns traços dos principais deles.

Álvaro de Campos – Engenheiro de educação inglesa. Decadentista, futurista, niilista. É o mais agressivo, revoltado, o que fala alto. Ao contrário dos outros da trupe — especialmente Pessoa e Ricardo Reis, que têm postura pudica, quase assexuada —, Campos é o único a falar de sexo, inclusive de homossexualidade. Consultem-se, por exemplo, as caudalosas "Ode Marítima" e "Saudação a Walt Whitman". Há poemas de Campos com data de novembro de 1935, poucos dias antes da morte de Pessoa que, como poeta, desaparece antes de Campos. Campos é também o mais dado a revelar, asperamente, as crueldades do mundo: "Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos, / Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores" (em "Ode Marcial").

Ricardo Reis – Médico, latinista e monárquico. Mudou-se para o Brasil em protesto à instauração da república em Portugal. O ano de sua morte é desconhecido. Com base nisso, José Saramago criou o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para Saramago, Ricardo Reis sobrevive a seu criador. Um dos personagens do romance é Lídia, referência reiterada nas odes de Reis.

Alberto Caeiro – Segundo Pessoa, Caeiro é o mestre de todos os heterônimos. Mestre inclusive do próprio Pessoa. Teria passado quase toda a vida como camponês, com instrução apenas primária.

Bernardo Soares – Ajudante de guarda-livros em Lisboa. Soares, prosador, é autor do Livro do Desassossego, fragmentos e anotações pessoais.

Coelho Pacheco – Na Obra Poética de Pessoa, há uma ode, "Para Além Doutro Oceano", assinada por Coelho Pacheco.

No Posfácio aos "Poemas Completos de Alberto Caeiro", Álvaro de Campos escreve: "O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o Antônio Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa é um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro".

Observem: aí é citado outro personagem, Antônio Mora, descrito por Pessoa como um louco que vivia num manicômio de Cascais. Haveria ainda o Barão de Teive e muitos outros, semi-heterônimos ou meros coadjuvantes. Somados, eles são bem mais de uma dezena — essa multidão que habitava a singular pessoa do Pessoa.



Um ponto comum a Pessoa e aos três principais heterônimos é a idéia das múltiplas personalidades. Pessoa, ele mesmo, afirma-se um fingidor, alguém que "sente com a imaginação". E diz: "Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu." ("Gato que brincas na rua"). Álvaro de Campos chega a proclamar a própria inexistência: "Começo a conhecer-me. Não existo". Reis é ainda mais explícito na multiplicidade: "Tenho mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo" ("Ode 423"). Desnecessário é dizer que essa pluralidade de personas faz de Pessoa um objeto privilegiado para os estudos psicanalíticos.

Outro recurso muito ao gosto do Pessoa e de mais de um heterônimo são as antíteses e os encadeamentos lógicos desconcertantes, nos quais ele parece brincar, maliciosamente, com o que aprendeu na leitura dos filósofos:

• "Dêem-me de beber, que não tenho sede!" (Álvaro de Campos, em "Bicarbonato de Soda").
• "Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto nenhum." (Caeiro)
• "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia." (Caeiro)
• "O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente." (Pessoa, "Autopsicografia")

Pessoa morreu (?) em 1935.

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MAIS PESSOA

• Blog: Sobre os heterônimos, vale a pena visitar o blog Fernando Pessoa (www.pessoa.art.br). O blog também reúne grande parte da obra do poeta.

• Artigo: Veja também este artigo muito esclarecedor, publicado no site da Universidade Fernando Pessoa, de Porto, Portugal.

• Ensaio: Pessoa e a doença do Ocidente, de Leyla Perrone-Moisés, da USP.

• Vídeo: Entrevista sobre Pessoa com Teresa Rita Lopes, crítica literária portuguesa.

• Vídeo: Também vale a pena acompanhar a série de programas sobre os 120 anos de Fernando Pessoa apresentados pelo canal Globo News. Dois episódios estão disponíveis na internet:

- Programa 1
- Programa 2

• Outros boletins: Como são muitos os Pessoas, esta é a terceira vez que o poesia.net dedica um boletim a esse que é um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos. Confira os outros boletins:

- Os outros Pessoas (n. 22)
- Pessoa, 70 anos depois (n. 145)

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Atenção: os textos ao lado com títulos entre colchetes são na verdade poemas sem título.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

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poesia.net no site

Este boletim, que segue por e-mail, é uma versão simplificada do página que está no site. Visite o site para ver boletim completo. Clique aqui.


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LANÇAMENTO

• Música Surda
- O Livro das Canções

Algum tempo atrás, falei aqui do Música Surda, conjunto musical carioca que desenvolve um trabalho belíssimo de juntar poesia e canções. O grupo — que já musicou poemas de nomes como Camões, Drummond, Cecília Meireles e García Lorca — está lançando agora seu primeiro disco, o CD duplo O Livro das Canções.

Data: 19/6, quinta-feira
Hora: 18h30
Local: Teatro Noel Rosa – UERJ
Rua São Francisco Xavier, 524 Maracanã
Rio de Janeiro – RJ

Site do Música Surda:
www.letras.ufrj.br/musicasurda

"Tenho mais almas que uma"

Fernando Pessoa

l Fernando Pessoa

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

"O que me dói não é / O que há no coração / Mas essas coisas lindas / Que nunca existirão". (Fernando Pessoa)


[O QUE ME DÓI NÃO É]

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.

5/9/1933

l Alberto Caeiro



O GUARDADOR DE REBANHOS

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

(...)

8/3/1914

l Ricardo Reis

[VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA]

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

12/06/1914

l Álvaro de Campos

LISBON REVISITED
(1923)

Não: não quero nada.

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

[O BINÔMIO DE NEWTON]

O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó--- óóóóóó óóó--- óóóóóóó óóóó óóóó

(O vento lá fora.)


poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Fernando Pessoa
Obra Poética
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977
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* Francisco Carvalho, "As Curvas de Eros",
in Rosa dos Eventos (1982)

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