quarta-feira, 4 de junho de 2008

PAIDEIA - A Educação Para A Virtude

PAIDEIA - A Educação Para A Virtude - Um Projeto Urgente Para o Brasil

Autor: Luiz Otavio de O Amaral [1]

A educação é uma função tão natural e universal da comunidade humana e tão auto-evidente, que tem exigido, por isso mesmo, muito tempo para ser plenamente compreendida, tanto pelos que a recebem, quanto pelos que a praticam. Daí , com efeito, a tardia literatura especifica e hoje a profusão de teorias, doutrinas e achismos acerca do tema. Já nos antigos gregos o conceito arete (cuja tradução para atualidade não é fácil) a virtude da tempera heróica, ética e da nobreza que caracterizava a bravura guerreira dos cavaleiros, eis talvez o primeiro conceito de educação, de formação do homem. O Homem vulgar, assim, não tem arete. A arete é, então, um atributo da excelência humana, a beleza de caráter que orienta a praxis (a ação cotidiana) humana para o bem, é enfim a unidade suprema de todas as excelências.

Em Homero (Ilíada e Odisséia) vamos encontrar este conceito helênico de formação do homem grego de então: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. Quando me enviou a Tróia, advertiu-me insistentemente que lutasse sem cessar por alcançar o poder da mais alta virtude humana e sempre fosse, entre todos, o primeiro.” Eis aí o mais belo sentimento pedagógico da arete - o mais perfeito equilíbrio entre altivez e magnanimidade cujo troféu é a honra. Outra poética e emblemática passagem de Ilíada acerca dos fins da educação é quando o velho Fênix, educador do jovem Aquiles, herói-protótipo dos gregos, recorda-o o fim para o qual foi educado: “proferir palavras e realizar ações.” Como se vê, com razão Platão considerou Homero o educador de toda a Grécia. A paideia - estruturação da vida individual, assente em princípios de virtude absoluta, cultivo da perfeição humana - é o meio para se alcançar a arete. Com efeito, já houve tempo em que se considerava a paideia (mais ainda a agoge espartana) o mais alto fim do Estado (polis). Tudo na vida dos helênicos girava em torno do ideal da arete. As artes : a arete da tragédia, da comédia, da poesia, da música (Homero, Ésquilo, Sófocles, Simônides, Tirteu...); a filosofia, ou arete do saber (Sócrates, Platão...); os esportes/ginástica (arete da força física/ideal olímpico); a política (politeia=vida pública+vida privada, em Péricles, politeuma).

É com os sofistas que o conceito restrito de educação se amplia e se eleva até a mais alta arete humana, superando o simples conceito de “criação dos meninos” (em Sete contra Tebas, de Ésquilo) primeira referência ao conceito educação que já agora abarca o conjunto de todas as exigências ideais, físicas e espirituais que conduzem à formação humana mais ampla e consciente (humanitas, em Cícero; Bildung em alemão, algo como cultura superior). É bem expressivo, por outro lado, que Platão, Isócrates, Demóstenes, dentre outros, considerem o defeito especifico da retórica - a arte maior dos sofistas - o falar para agradar aos homens e não para atender o “bem eterno”, é corrupção do discurso (crise da arete retórica, a pseudo-paideia). Daí porque hoje, quando somos acometidos da síndrome moderna da avalanche teórica (de opiniões, achismos, que em certos casos não vão além do mero rebatizar de denominações) que sufoca a todos, é curial o crivo da condenação reiterada de Platão aos sofistas (inclusive Górgias de Leontini e Protágoras os maiores dentre os muitos sofistas da antigüidade clássica) : porque eles reduzem o conhecimento à opinião e o bem à utilidade, relativizando valores e princípios absolutos para a vida humana, não ostentam mais que “sapiência aparente” (isto foi depois, também, confirmado por Aristóteles).

Assim, toda e qualquer retórica cientifica descomprometida com sua efetividade, livre da necessidade probatória, nos leva a certo grau de desconfiança. A novidade superante é sempre uma necessidade da jornada humana, mas a natureza não dá saltos, e a imposição absoluta do novo só pela novidade é tolo desafio à natureza dialética daquele evoluir humano. Da educação nas sociedades primitivas, que visava apenas manter a imutabilidade sagrada das técnicas culturais, embora não se desconhecesse que nenhuma sociedade humana sobrevive sem que sua cultura seja transmitida de geração para geração - esta entrega (do Latim tradere) de cultura é a tradição - passou-se para a nova educação, nas sociedades ditas (mais) civilizada que incorporam, além daquela transmissão cultural, o dado novo do aperfeiçoamento e correção da tradição.

É que “todas as coisas mudam sempre sobre uma base que não muda nunca” (Ruy/1910). Assim, por exemplo, os conceitos de Direito (sempre o reto, o justo), de democracia (evoca sempre povo), de pedagogia (paidagogia, evoca sempre a idéia de condução, daí o escravo - o paidagogo - que conduzia pelas mãos a criança à escola, ao saber). Mudam as palavras, mas as coisas em si (ou seus conceitos) são as mesmas : educar é alterar a natureza humana, é tornar os homens melhores, enfim alcançar a arete é o propósito de nossa vida; a pedagogia sofista bem divisou isto. Há a virtude cívica (arete política) que é o fundamento do Estado; há a verdade como virtude essencial da ciência (episteme) e diria mais: de toda educação; há a virtude do indivíduo que é múltipla: a solidariedade, a eticidade, a justiça, além do adestramento/instrução técnico-profissional (parte não essencial da paideia autentica, que visa formar o homem na arete total). A virtude em Platão se decompunha em: justiça, prudência, piedade e valentia.

Antes de ser ciência autônoma, a pedagogia era parte integrante da ética ou da política e elaborada unicamente em atenção aos fins propostos pela ética e pela política ao homem, isto enquanto pensar filosófico especificamente pedagógico. Porém enquanto natureza prática/empírica a pedagogia referia-se ao primeiro e mais elementar adestramento da criança para a vida (privada e pública). Eis aqui o ponto crucial desta especulação: este viés prático/pragmático (hoje mais adestramento utilitarista) anulou a razão de ser (a arete total, a formação virtuosa do educando, adulto ou criança) da pedagogia e consequentemente da educação. Daí, as deformações nos quadros dirigentes da sociedade brasileira em especial, porquanto se a sociedade não mais devota dedicação absoluta aos valores/virtudes paradigmáticos (o bem por princípio e a vantagem por decorrência/premial) seus indivíduos só podem mesmo tolerar e pior, aspirar, também, pilhar o interesse público. Por que será que tantas “autoridades” têm sido ocasionalmente flagradas em desvirtudes, falhas e crimes infamantes ? A resposta até pode ser : por causa de arroubos de virtudes de algumas autoridades, cumulados com o interesse jornalístico/comercial da imprensa. Mas a resposta plena de verdade é que: estes casos só representam a ponta do iceberg, ou seja, há fora das vistas uma consciência permissiva cada vez maior no seio da sociedade.Já se vê mesmo um Estado marginal dentro do Estado oficial. O que se dirá das listas de homenageados, condecorados e premiados com os mais altos cargos públicos, listas essas repletas de indignidades “politicamente corretas (?!)”. Pesquisem-se tais listas e comprovar-se-à o quanto há de inversão moral. A propósito é bem atual a advertência de Platão: importa mais infundir à polis um ethos (o espírito ético) bom e não dotá-la dum amontoado de leis...

Com efeito, o Direito tem forte poder educativo. Por outro lado, a educação tem forte sabor jurídico (é pobre, senão paupérrima a educação que só ensina o fazer, o ter e despreza o ser : o ser justo, ser ético, o ser cidadão, o ser bom enfim). Reconhecer isso passa longe de eventuais disputas ou hegemonia profissionais, acadêmicas; eis é imperativo de sobrevivência e progresso social de um povo. Ontem já era assim, hoje, no entanto, é cada vez mais urgente tal compreensão estratégica.

Então faz-se urgente conciliar o amor pelo eu subjetivo (antítese do eu comunitário) com a totalidade do mundo circundante. O culto da alma individualizada com a consciência viva da comunidade, da cidade/estado, com a virtude cívica genérica de cada eu. Em suma trata-se de harmonizar os interesses privados/individuais com os interesses públicos/cívicos.Até porque são realidades de alta reciprocidade de interferência: um bom estado exige um bom cidadão e vice-versa, ou seja, um cidadão que saiba mandar e obedecer orientado pelo fundamento da justiça. Tudo isto é função da educação autentica, instrumentalizada pelo ensino das virtudes (ou melhor da virtude que é única, mas que apresenta porções ideais). Com efeito, foi a cultura ática a primeira a equilibrar as duas forças: o impulso criador do indivíduo e a energia unificadora da comunidade política. Nem o benfazejo apogeu da alma individualizada, do ente individual/pessoa humana que surge com o cristianismo, nem a radicalização individualista do liberalismo (e pior ainda do neoliberalismo) devem tolher a vocação, conquanto essencial hoje bastante minimizada, da educação enquanto ensino ético-político, verdadeiro eixo de sustentação da formação integral do homem contemporâneo, máxime do brasileiro. A formação ética e política são, assim, parte essencial da verdadeira paideia, da educação autentica. Daí porque Tucídedes disse: “chamo à nossa cidade a alta escola da cultura da Hélade”. Como se vê, o Estado é, ou deveria ser, a mais alta escola da cultura plena e a vida privada a propaideia (base/preparatória da paideia) da vida pública (da paideia política).

A formação do caráter, na perspectiva da arrete total, da perfeição humana, deve ser levada a efeito desde cedo, como uma hodierna propaideia; educar a todos para serem dignos do trono real. Já que temos de viver inexoravelmente em sociedade e organizada minimamente, é então indispensável, que desenvolvamos as virtudes públicas/cívicas (civita/polis=Estado), o “estado dentro de nós”, como pregava Platão (Rep.).Todavia a sementeira desta paideia contemporânea só pode frutificar em regime de tempo integral e desde a primeira infância até o último suspiro, eis que a educação plena jamais se completa, senão a vida. A perfeição humana, a educação total (arete total) é sempre, uma fórmula de eterna procura, tal como a justiça, a democracia, objetos de desejo jamais alcançáveis enquanto resultado absolutamente conclusivo ou terminativo.

Ensinar pressupõe a crença de que mudanças são possíveis, de que o discurso da acomodação não melhora as dores do mundo; daí porque o ato de ensinar é constante exercício da faculdade humana de criticar. É preciso criticar, discutir, mudar, enfim não parar de buscar a razão de ser de nossa ação educativa, este é o problema fundamental de toda educação: o educando na perspectiva do estadista e este na perspectiva do pedagogo; vale dizer: a meta-exemplo e o projeto consciente de seu melhor fim. É educação em sentido mais alto, mais que mero adestramento para o fazer, ou para o ter. É, pois, educação no sentido ético, como supremo bem e suma felicidade humana, o bom e o belo a serviço da formação do homem. Segue-se que uma escola, sobretudo a universitária, muda e passiva, já não merece tal denominação, senão a de túmulo do progresso humano. Como nossa atual educação (em todos os níveis da sedimentação educativa) tem reagido ao patético quadro social (interferente no individual, é claro) que nos envolve ? Ou na base do “salve-se quem puder” (bem ou mal dissimulado: p. ex. “não nos envolvemos em política/cuidamos apenas de formar profissionais”); ou “fazemos o que é possível” (p.ex. trouxemos um político/um filme p/discussão, temos uma disciplina especifica...). Ora, o Brasil dos excluídos, da violência e corrupção generalizada, da dissolução cultural..., mais do que episódicas preocupações ou campanhas pontuais, esta a exigir de nossa educação em geral um constante exercício da reflexão ético-social perpassando todos os momentos da vida e na perspectiva da educação total e permanente, cuja iniciação se dá na escola que é, nada mais nada menos, o espaço inicialmente mais propício nesta paideia total. O grande educador Paulo Freire educa-nos ao proclamar: “estou convencido da natureza ética da prática educativa”; mas, por certo, da ética universal, não da “ética do mercado”. (Out.1999).

[1] Luiz Otavio de Oliveira Amaral é advogado militante, ex-professor Direito na UnB e UDF. Ex-Diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente leciona e é coordenador pedagógico da Fac, de Direito da Universidade Católica de Brasília-UCB. Foi assessor de Ministros da Justiça e da Desburocratizarão/P.Rep. Autor de “Relações de Consumo” (4 v.); “O Cidadão e Consumidor” (co-autor); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor, coord. Prof. Cretela Júnior (Ed.Forense) e “Legislação do Advogado”, MJ, 1985. Possui ainda outras obras e artigos publicados (Direito, Educação e Ética... ) (lamaral@conectanet.com.br)

Autor: Luiz Otavio de O Amaral

Advogado militante e professor da Fac. Direito /UCB

(Primeiro Executivo federal do Direito do Consumidor,Inclusive quando da elaboração do CDC e representante brasileiro nas rodadas de discussão nas Nações Unidas. Autor de livros/monografias na área do Direito do Consumidor, publicados no Brasil e no exterior.)

Fonte: http://www.advogado.adv.br/artigos/2001/luizamaral/paideia.htm

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