quarta-feira, 15 de abril de 2009

O debate sobre as cotas raciais e o neobranqueamento

A Emergência do Neobranqueamento no Senado Federal do Brasil

Sérgio José Custódio*

Brasil, 13 de abril de 2009

A ideologia do branqueamento se fez presente no Brasil desde a chegada de Cabral. Em cada momento da história do Brasil ela buscou dar uma justificativa discursiva para a inclusão e a exclusão social, variando a ênfase de seus argumentos ao longo do tempo e de acordo com o contexto. Parida pelos donos do poder, em cada época ela buscou esparramar-se por entre o povo brasileiro como verdade a ser temida, obedecida pelos particulares excluídos socialmente.

Se entre os gregos e os romanos não havia a identificação entre escravidão e cor da pele, a escravidão inventada no Brasil, no processo de colonização portuguesa, falará da Arca de Noé, da maldição que Noé roga ao seu neto Canaã, filho de seu filho Ham, destinando-o à escravidão e do sinal de Caim para dirigir-se aos não-brancos, ao “outros” excluídos socialmente. O indígena e o africano aparecem então como negros e carentes, sem fé, sem rei e sem lei. A escravidão de africanos e indígenas se justifica, no quadro da Reforma e Contra-Reforma, como uma missão salvadora de almas. Violências de toda ordem contra os não-brancos se perpetuam no tempo como uma sina justa para os sem-alma, pecadores e amaldiçoados.

Com a ida dos jesuítas e a vinda de novas idéias da Europa, assolada pelas revoluções burguesas e revoluções científicas, novas justificativas (para além da religiosa) aparecem para a escravidão de ex-africanos e de indígenas. Cozidas no forno de idéias e poder das elites locais patrimonialistas, elas são usadas para esmagar qualquer direito à diferença formal no Brasil. Na régua racionalista, as sociedades ditas “primitivas” como as africanas e indígenas, beiram a irracionalidade, ficando o supra-sumo da razão para a sociedade branca européia, a civilização superior. O clima e a geografia imporiam a cor e a inferioridade aos não-brancos. A saída seria branqueá-las, para apagar-lhes as nódoas da cor do pecado e do atraso. Cálculos são apresentados no século XVIII e no século XIX para o número de gerações necessárias para o branqueamento da sociedade no Brasil.

Uma sanha atávica de usar compasso, régua, balança e outros instrumentos de medida para peso do cérebro, largura e ângulos da face transformam o ser humano em objeto de laboratório para justificar preconceitos sociais na segunda metade do século XIX. É o nascimento das teses raciais. Qual era a raça superior e quais eram as raças inferiores? Além das justificativas religiosas, geográficas e climáticas, a justificativa do tipo biológico também aponta o dedo para a inferioridade dos não-brancos, dos negros.

Com o evolucionismo na biologia, impõe-se a genética, o “homo-sapiens” universal e a seleção natural, na segunda metade do século XIX. Quem era o mais forte e quem era o mais fraco, descartável? Justamente, os não-brancos eram os fracos, os descartáveis na história biológica do homem.

Mesmo com milhares de nordestinos atingidos pela seca e milhares de ex-escravos negros e ainda muitos indígenas, a elite brasileira seleciona imigrantes brancos como força de trabalho principal, continua o branqueamento na transição do século XIX para o século XX.

A senha, a mensagem para o povo não deixava dúvida. Nenhuma política pública formal para o excluído, o diferente, o outro, negro, indígena e seus descendentes. A saída era individual, via apadrinhamento. Era branquear-se. O registro na história das mentalidades do branqueamento é terrivelmente forte para as massas no Brasil. É a fala do cura, do padre, do fogo dos infernos do pecado versus o crente obediente e temente a Deus. É a fala do senhor de escravo que podia matar, surrar, quebrar os dentes, cortar os braços versus o escravo. É a fala dos doutores de fala difícil, empolada, bacharelesca versus o analfabeto, o sem-universidade. É a fala da autoridade privada dona dos espaços públicos, feita autoridade pública num lugar sem eleição, sem democracia, ou numa república sem o direito do voto da maioria.

No jargão popular, “Deus te faça branco”, “amanhã é dia de branco” e o branqueamento era a senha para ser aceito socialmente.

Um quadro então é pintado, encomendado pelo governo brasileiro, para ser apresentado pelo representante do Brasil no Congresso Mundial das Raças em 1911, em Londres. Retrata um avô, um filho e um neto, como quadro síntese do Brasil. O avô é negro, o filho mestiço e o neto branco. Deste jeito, o representante do Estado brasileiro, apresenta o quadro e orgulhoso, conclui sua fala: “em cem anos, o Brasil será branco”.

Interessante: no Senado Federal do Brasil, em 2009, quase cem anos depois de Londres, um retrato é apresentado aos senadores por um diletante. Estático como o quadro pintado a pedidos, o retrato feito a pedidos é para sustentar uma posição ideológica, há corpos negros, mestiços e brancos no retrato, aparentemente feito numa escola pública. O diletante, famoso por xingamentos públicos e insultos impressos ao Senado Federal e ao presidente da República do Brasil (um sem-universidade), vaticina com ironia e cólera no seu rosto, lábio, voz e dedo: “Estão vendo! Querem criar divisões raciais no Brasil, racializar, jogar um contra o outro, criar o ódio racial.”

Em pesquisas de opinião pública conduzidas em 1995 e em 2008 pelo instituto Datafolha, cerca de 90% dos brasileiros admitem a existência de racismo no Brasil. Nas duas enquetes, porém, pouca gente se assume como racista. O censo escolar brasileiro de 2008 aponta cerca de 12 milhões de famílias matriculadas no ensino médio público (técnico, normal, Educação de Jovens e Adultos), representado 88% das matrículas do ensino médio brasileiro. O IBGE utiliza as categorias étnicas branco, preto, pardo, indígena e amarelo para os censos demográficos brasileiros.

Como então classificar a fala do diletante, que aparentemente, era direcionado a sustentar a posição minoritária de alguns senadores contra a aprovação do PLC 180/08 (Projeto de Lei da Câmara dos Deputados) que reserva 50% das vagas nas universidades públicas e nos cursos tecnológicos no Brasil, por turno e por curso, para a escola pública, respeitando a proporção de brancos, negros e indígenas e um critério de renda, conforme os dados do IBGE, por um período de dez anos e com implementação cadenciada.

É uma fala racista? É uma fala que esconde interesses econômicos da indústria do vestibular? É uma fala pessoal, individual, ocasional, oportunista?

Devagar com o andor, porque o santo é de barro. É que se a gente olhar muito para o abismo, podemos ser engolidos por ele, cair na provocação ou na tentação fácil.

A fala do diletante não é individual, não é pessoal, é reveladora de uma ideologia, de um discurso, da ideologia do neobranqueamento. Ela se constrói articulando interesses econômicos e políticos para justificar a exclusão no Brasil em seu contexto atual. Ela é extremamente coerente com a ideologia do branqueamento, que varreu cinco séculos de história do Brasil. Ela reverbera fácil em setores da mídia, como as falas de padre Vieira no século XVII reverberavam para as massas desde o púlpito da igreja. Tem intenção de pregação.

Voltemos ao retrato apresentado no Senado. Veja, as pessoas da foto são apresentados como meros objeto de retórica, não são sujeitos históricos, não tem passado, nem futuro, são estáticas, não dinâmicas, estão na bandeja para o gozo retórico do expositor. Levado ao limite o raciocínio da ideologia do neobranqueamento, as pessoas agiriam mecanicamente, como selvagens, homem lobo do homem, esmurrariam umas às outras, pegariam os facões de Ruanda e se atracariam umas às outras por uma vaga na universidade pública, ou como certos atormentados da televisão, pegariam em armas e atirariam umas nas outras por uma vaga na universidade!!! É a importação de realidades estranhas para justificar a teoria, a ideologia.

A dimensão intelectual daquelas pessoas é tão inferiorizada na fala da ideologia do neobranqueamento, que se busca à fórceps encaixar a realidade na teoria. É deste jeito que as elites sempre enxergaram os excluídos: como incapacitados e como feras selvagens inferiorizadas. Ao recorrer ao retrato estático, a ideologia do neobranqueamento busca se impor pelo medo, pelo terror, pelo fatalismo, como se até então na história do Brasil , o outro social não tivesse sido vítima de violência.

A cegueira social é outro ingrediente da ideologia do neobranqueamento. Em tempos globalizados o ser universal está em toda parte do mundo e as pessoas são meros consumidores igualitariamente feitos, clonados, emborrachados, descoloridos, brigando por mercadorias, pela mercadoria do ensino público superior gratuito. Não existe Brasil, escravidão, descendentes de africanos, descendentes de indígenas, só o carinha em frente à televisão ou à internet, o carinha universal. Não existe o direito à educação em todos os níveis. A cegueira social projetada para os excluídos pelo discurso do neobranqueamento é estática, porque o mundo é e não está para ser transformado. Logo, não há espaço para a imaginação generosa. A ideologia do neobranqueamento não consegue enxergar que o PLC 180/08 justamente faz o movimento de colocar aquelas pessoas da foto, juntas na escola pública, brancos, pobres, negros e indígenas, juntas também na universidade pública. Uma foto, por exemplo, da USP, tirada numa sala de aula de um curso como arquitetura, exporia o tipo de elite que a ideologia do neobranqueamento sustenta de forma envergonhada e escondida, ao projetar a briga no outro não-branco, excluído, ao tentar culpabilizar as vítimas.

Como é notório, o PLC 180/08 foi aprovado no dia 20/11/2008, na Câmara dos Deputados. Carregado de simbologia, o dia 20 de novembro é o dia brasileiro da consciência negra, dia de Zumbi dos Palmares. Contra isto se volta o discurso da ideologia do neobranqueamento. Ela não admite que houve massacre da cultura indígena e dos indígenas, violência aos escravos, auto-organização dos escravos contra a escravidão, contra os senhores, ela não reconhece a legitimidade da figura histórica de Zumbi dos Palmares. Para a ideologia do neobranqueamento o Brasil é uma sociedade de democracia racial e metarracial. Porém, isto se contradiz com as pesquisas de opinião e com todas as estatísticas sociais da condição do negro(a) e do(a) indígena na sociedade brasileira.

O discurso da ideologia do neobranqueamento, ao citar o estudo da PNAD, de 1976, que fala em 136 cores de pele no Brasil e ao citar também outro estudo, de 1971, e que fala em mais de 460 cores, busca colocar uma arapuca retórica para prender o PLC 180/08 no Senado Federal para impedir que ele vire lei. Ora, aqui se identifica uma tentativa de, por um lado, criar uma racialização por espectometria de cores e, por outra, gerar uma divisão infinita entre os excluídos para impedir que a diferença venha à tona e enfraquecer sua posição política coletiva pela aprovação do PLC 180/08, numa lógica dos sátrapas e dos romanos de dividir para governar. A ideologia do neobranqueamento sustenta a divisão infinita e artificial das cores no Brasil para manter o privilégio dos brancos e do ensino privado nos bancos universitários públicos. Com isto, é coerente com a ideologia do branqueamento no Brasil, que tudo fez para impedir o reconhecimento público formal da diferença, colocando o problema sempre no campo privado, do patrimonialismo, do apadrinhamento e empurrando com a barriga as soluções vias políticas públicas de superação da desigualdade. Ao buscar organizar artificialmente as falas de um pretenso espectro de cores no Brasil, a ideologia do neobranqueamento busca brincar de Deus e vai às raias da humilhação e do vexame públicos, como ocorreu no Senado Federal, onde um negro foi escalado para “representar” uma divisão forjada do movimento negro, como se fosse outra etnia, sendo que a pessoa mal conseguia balbuciar seu texto para sustentar o script.

A ideologia do neobranqueamento, nascida no século XXI, no Brasil, esquece ou omite o enterro acadêmico da ideologia do branqueamento no Brasil. Isto se deu nos anos 1950 e foi graças a um agente público multilateral, a UNESCO, numa reação mundial contra o racismo e a racialização ocorrida nos anos 1930 e o holocausto contra os judeus, que pesquisadores como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, dentre outros, desconstruíram as teses do branqueamento ao expor a condição social do negro e do indígena na sociedade brasileira e ao negar a pretensa democracia racial brasileira, em resposta a pergunta motivadora da pesquisa e de seus desdobramentos.

Para a Unesco, nos seus documentos dos anos 1950, a raça humana é uma só e os humanos se nuclearam em etnias ou grupos sociais, como os caucasóides, os mongolóides e os negróides. Não há raça no sentido alimentado pelo racismo dos anos 1910, 1920, 1930 e 1940. Contudo, a ideologia do neobranqueamento quer enxergar a palavra raça e seu pior sentido no PLC 180/08 quando nele não existe tal coisa, tal aposta. Como ideologia, o neobranqueamento busca confundir a opinião pública brasileira, misturando alhos com bugalhos.

A ideologia do neobranqueamento não quer apenas fazer sumir da memória do brasileiro o enterro acadêmico da ideologia do branqueamento. Ela advoga também a morte da memória das lutas do povo negro brasileiro, do povo indígena e advoga um brasileiro a-histórico, um típico ideal, abstrato, universal e geral. Inclusive ela clama para que os Senadores da República façam o mesmo, não tenham memória ou tenham memória seletiva, esquecendo-se do que já votaram, esquecendo-se das estatísticas do IBGE. Ocorre que, o Senado Federal já aprovou o Prouni, Programa Universidade Para Todos, com os mesmos critérios presentes no PLC 180/08 e foi por quase unanimidade dos votos dos senadores em plenário do Senado. Do mesmo modo, a comissão de educação do Senado, aprovou em caráter terminativo em agosto de 2008, projeto semelhante ao PLC 180/08. Outrossim, mais de 500 mil pessoas convivem harmoniosamente no Brasil nos bancos universitários privados com os critérios do PROUNI, não há nenhum registro de violência racial e são já cinco anos de lei em vigor. É por isto que o neobranqueamento é ideologia. Quer jogar fumaça sobre a realidade, sobre as políticas públicas que respeitam a diferença do outro social. O neobranqueamento também não admite as experiências exitosas de reservas de vagas já existentes em algumas universidades brasileiras.

Se fôssemos ingênuos e dominados por esta ideologia do neobranqueamento interpretaríamos à risca, sem contextualizar, sem problematizar, seu apetite mais atual, urgente e mesquinho: que se retire do PLC 180/08 o respeito à proporção dos brancos, negros e indígenas e se feche um acordo. Que se use o corretivo, um mata-borrão e pronto. Uma borracha.

Aí a ideologia do neobranqueamento seria vitoriosa e, até com cara-de-pau, diria que foi a legítima defensora da escola pública e tirou todo pecado, toda nódoa do PLC 180/08. Não é o caso. Somos a escola pública e sua diversidade, a orquestra toda e não um violino encantado e irreal de neobranqueamento. Dizemos não ao neobranqueamento e sim a aprovação do texto integral do PLC 180/08. Não caiamos em falsas polêmicas como cota social versus cota racial e este tipo medonho de abordagem divisor de águas.

Que os senadores e senadoras honrem o Brasil! Honrem a escola Pública e sua Diversidade! Honrem o povo negro e o povo indígena que têm sim direitos neste Brasil!

*Sérgio José Custódio é economista, formado pela Unicamp, é da Coordenação Nacional do MSU (Movimento dos Sem Universidade) e do Comitê Brasileiro Pela Aprovação do PLC 180/08.

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