quarta-feira, 1 de abril de 2009

Lei Rouanet: a cultura como marketing e negócio

Lei Rouanet: a cultura como marketing e negócio

Diretor teatral explica o histórico da lei e analisa como as grandes corporações são as que mais se beneficiam dela
Diretor teatral explica o histórico da lei e analisa como as grandes corporações são as que mais se beneficiam dela
27/03/2009

Dafne Melo
da Redação

“A pobreza do imaginário definido por uma arte que não tem perspectiva crítica condena as relações sociais à impossibilidade de cidadania”, alerta Marco Antônio Rodrigues, diretor e autor teatral e um dos fundadores do grupo Folias d'Arte, de São Paulo. Para ele, é exatamente esse o cenário cultural do Brasil de hoje, em grande parte, acredita, é decorrente da manutenção do modelo de financiamento da Lei Rouanet, sancionada em 1991.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Rodrigues critica o paradoxo da Lei "que desmentiu a velha ladainha de que somos um país com muitos problemas sociais mais urgentes do que a promoção cultural. Taí pra todo mundo ver: um bilhão de reais são reservados anualmente à renúncia fiscal. Seria muito dinheiro, se bem aplicado, daria pra fazer uma revolução gigantesca". Confira a entrevista abaixo:


Brasil de Fato - A Lei Rouanet foi sancionada em 1991, durante a gestão Collor. Qual era o objetivo daqueles que a implementaram?

Marco Antônio Rodrigues - A lei Rouanet é filha de uma outra lei de incentivo implementada no Governo [José] Sarney por ninguém mais ninguém menos que Celso Furtado, então ministro da Cultura daquele governo. A memória que tenho da Lei Sarney é que, embora se apoiasse no mesmo falso princípio de que é possível mobilizar o empresariado nacional para algum objetivo nobre que não seja a obsessiva perseguição do lucro, ela era mais democrática.

Era possível, por exemplo, participar de um projeto cultural com serviços, com produtos, enfim, não ficava reduzida a destinação de recursos financeiros. Também não eram necessários lucros astronômicos para que o incentivo fiscal tivesse qualquer efeito, de forma a interessar pequenos empresários na aplicação da Lei. Pensava-se, que num eventual processo de aperfeiçoamento, a Lei poderia ter efeitos comunitários, fazendo com que, por exemplo, o comércio local participasse da "produção" de um espetáculo, cedendo materiais, apoio e até dinheiro, podendo abater do pagamento de seus impostos. Bem, talvez a memória me traia e eu esteja tendo um delírio polianesco.

Qual era o objetivo do Celso Furtado ao elaborar a lei?

Acredito que o Celso Furtado, percebendo a dificuldade que teria para conseguir mais recursos orçamentários diretos para a Cultura, optou, à época, por uma estratégia indireta e de longo prazo. Acreditava, que com o tempo, se criaria um ambiente de exuberante produção artística, que acabaria por pressionar um quadro em que não houvesse saída política para a manutenção vergonhosa de uma participação tão ínfima da cultura na vida nacional. Quadro que aliás permanece, a despeito destas supostas boas intenções (interpretação minha) do mestre Celso Furtado.

Como foi a mudança com o governo Collor?

Collor, como sabem todos, entrou rasgando. Aliás, os primeiros órgãos a serem destruídos foram aqueles da cultura: a Fundação Nacional de Artes Cênicas, a Funarte, enfim, terra arrasada. Acabou com o cinema nacional. E como era o rei da moralidade, atingiu de cara a Lei Sarney, inventando no seu lugar a Lei Rouanet, que entrega ao empresariado os destinos da produção artística e da cultura nacional. Acabou com a Lei Sarney dizendo que havia muitas distorções na sua aplicação, com gente se locupletando com os recursos da renúncia fiscal. O discurso pegou fácil, como qualquer discurso pretensamente moralista, policialesco e de retórica revisionista pega desde sempre, à direita e à esquerda.

O escopo da Lei Rouanet é o seguinte: só podem se beneficiar dela as empresas que pagam imposto de renda pelo regime de lucro real. Ou seja, os grandes lucros. Estão excluídas as empresas que pagam imposto por lucro presumido ou lucro arbitrado, ou seja, de lucros menores. Também se excluem benefícios sobre operações de capital, vendas de empresas, impostos sobre heranças. Apenas o lucro real: grandes corporações, bancos e etc.

É claro que os artistas que têm poder de acessar estes recursos são também os mais conhecidos, com projetos sem qualquer perspectiva crítica. Ou seja: matou vários coelhos com uma porrada só: agradou as estrelas, que até hoje se mobilizam para manter intocados os seus privilégios, agradou a empresa que o levou à presidência da república, a famigerada Rede Globo e outras mídias em geral, agradou as grandes empresas e seus diretores de marketing que têm mais poder na formulação de políticas de fomentos às artes do que o próprio presidente da república.

Para não falar dos ministros da cultura que, desde aí, são apenas fantoches na manutenção desta política pública de cunho fascista, privatizante e altamente alienada. Por último, fomentou a organização das grandes fundações, tipo Roberto Marinho e Itaú, que sendo as maiores captadoras, legitimam uma operação política que transfere recursos públicos de um bolso para o mesmo bolso, camuflados por uma aparência de preocupação cívica e cultural. Goebbels vira no túmulo de inveja.

Na sua opinião, quais são as maiores problemas que esse modelo de financiamento traz?

A maior distorção é que este modelo atravessou os governos ditos democráticos de Fernando Henrique Cardoso e Lula sem nenhum retoque. No atual governo houve algumas tentativas pontuais de maquiagem da lei, que foram imediatamente soterradas pela resposta imediata das organizações Globo.

Celso Frateschi, ex-presidente da Funarte, caiu, na minha opinião porque sinceramente tentou fazer com que a Lei fosse, digamos, submetida a controle público. Uma reportagem no Jornal O Globo sugerindo prevaricação foi o suficiente para que o ambiente em que trabalhava ficasse infernal levando-o à renúncia.

Ou seja, a maior distorção é que da direita mais canina à esquerda mais radical (se é que isto ainda pode se aplicar como adjetivo) a visão sobre cultura é a mais provinciana, estúpida e leviana que se pudesse imaginar. É um beco quase sem saída porque a compreensão da sociedade, ou das forças sociais mais progressistas é exatamente igual: para elas, cultura e produção artística é uma matéria cosmética que deve ser tratada da forma mais subalterna possível.

É possível, por meio dessa reforma na lei, melhorar seu funcionamento, ou ela tem um problema de fundo e deve ser extinta?

Na minha opinião, a única forma de ser realmente funcional é que metade do bilhão de recursos destinados ao incentivo fiscal por ano, constituam um fundo público regido por editais com participação, em seu julgamento, dos setores organizados da sociedade civil. Segundo, que o empresário arque com parte dos recursos, não como funciona agora, onde o recurso utilizado é exclusivamente público. Terceiro, que os recursos captados pelos que se beneficiam deste estelionato legalizado sejam submetidos a controle público: ou seja, qual a relevância do projeto para a sociedade? Tem qualidades artísticas? Necessita realmente do dinheiro público ou não passa de uma jogada mercadológica espúria, como a primeira temporada do Cirque du Soleil no Brasil que captou nove milhões de reais pela Lei e vendeu seus ingressos a razão de duzentos reais? Quarto, que o dinheiro captado pague um pedágio de pelo menos vinte por cento ao Fundo Público que será destinado a projetos que não têm instrumentos para captação, como constituição de bibliotecas públicas, apoio a novos artistas, investimento em projetos de pesquisa de linguagem e etc.

Além dos empresários, quais outros segmentos da sociedade se beneficiam desse modelo de incentivo fiscal?

A cultura é a forma que as pessoas vivem, se relacionam e se manifestam. E mais do que isso, é o sonho coletivo. A produção artística é a forma concreta com que a cultura se manifesta. A pobreza do imaginário definido por uma arte que não tem perspectiva crítica condena as relações sociais à impossibilidade de cidadania. A quem isto interessa: a manutenção de um programa econômico e político que se baseia justamente nisto: na ignorância, na exclusão, na competição mais violenta como forma de exercício de poder.

Por fim, qual seria um modelo alternativo de política pública e financiamento para a área cultural?

Há inúmeros exemplos em todo o mundo, de países inclusive conservadores em seu exercício democrático: financiamento público movido pelos interesses genuínos de desenvolvimento da população. Orçamento público. O paradoxo da Lei Rouanet é que ela desmentiu a velha ladainha de que somos um país com muitos problemas sociais mais urgentes do que a promoção cultural. Taí pra todo mundo ver: um bilhão de reais são reservados anualmente à renúncia fiscal. Seria muito dinheiro, se bem aplicado, daria pra fazer uma revolução gigantesca. Da forma que é, destinando recursos públicos pra quem deles não precisa atende precisamente aos interesses de uma política cultural fascista e excludente.

Quem é:
Marco Antônio Rodrigues é diretor e autor teatral e um dos fundadores do grupo Folias d'Arte, que existe a 11 anos. É também professor do Teatro-escola Célia Helena, e funcionário da Fundação Nacional das Artes (Funarte), desde 1987, como profissional de artes cênicas.

Fonte: Boletim Brasil de Fato

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