segunda-feira, 13 de abril de 2009

Artigo Valéria Burity - Plenária do Consea

PEC 047/2003 - A importância da inserção do direito à alimentação no artigo 6º da Constituição Federal (CF).

Já há uma série de normas constitucionais que, de forma não explícita, consagram a alimentação como um direito constitucional, como, por exemplo, as normas que determinam a função social da propriedade, as que dispõem sobre a demarcação de terras indígenas e dos territórios quilombolas, as normas que dispõem sobre meio ambiente, água, saúde, direito à vida, não tolerância à discriminação em qualquer de suas formas de manifestação, etc. Além disso, a Constituição Federal estabelece como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.

O Brasil assinou uma série de Tratados Internacionais que dispõem sobre o Direito Humano à Alimentação Adequada e, em 2006, foi aprovada a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional que prevê a garantia deste direito. Assim, a inclusão do direito a alimentação no artigo 6º da Constituição Federal, através da aprovação da PEC 047/2003, é uma forma do Estado Brasileiro reafirmar, mais uma vez, o seu compromisso de cumprir as obrigações assumidas com a ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos e com a promulgação de normas nacionais relativas a esse direito.

Porém, apesar de haver normas suficientes que garantam o reconhecimento do direito à alimentação, a menção expressa desse direito na constituição facilita o uso de argumentos para promover e exigir este direito por e perante aqueles que, por razões ideológicas, políticas ou técnicas, não fazem uma interpretação da Constituição Federal e de outras normas legais que garantam a promoção e a exigibilidade do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Assim, essa proposta de inclusão é fundamental porque reforçam argumentos em prol do DHAA de duas ordens: jurídica e política.

Importância Jurídica da inserção da alimentação como direito social previsto na Constituição Federal:

Em primeiro lugar é importante frisar que os que militam com direitos humanos defendem sua promoção e exigibilidade independente de previsão legal, pois a lei está para servir aos povos e não o contrário. Contudo, é importante reiterar que os argumentos aqui expostos podem contribuir para exigir a promoção do DHAA, principalmente, perante os que negam o reconhecimento desse direito ou no seu discurso e/ou na sua prática.
Feita essa consideração podemos citar alguns efeitos que serão mais difíceis de serem questionados com a aprovação da PEC 047/2003:

1) Alguns doutrinadores conceituam os direitos humanos positivados na Constituição Federal como direitos fundamentais. São fundamentais materialmente pela sua importância para a vida. São formalmente fundamentais porque estão consagrados na norma fundante do nosso país. Por isso a Constituição, através do art. 5º, § 1º, definiu que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, ou seja, deixam de ser meros programas e vinculam os poderes públicos. Além disso, esses direitos foram incluídos no rol das “cláusulas pétreas”, o que significa que não podem ser suprimidos, são bens intocáveis, conforme dispõe o art. 60, § 4º da CF.
2) A Constituição Federal é a expressão superior do interesse público. Está no topo da hierarquia normativa, é a base para toda ação pública. Os três poderes (Executivo - em suas três esferas, Legislativo e Judiciário) devem envidar o máximo de esforços para garantir-lhe efetividade e devem abrir mão de qualquer ação que lhe seja prejudicial. Além disso, qualquer omissão que ponha em risco a efetividade das normas jurídicas é inconstitucional e pode e deve ser questionada.
3) A previsão expressa da alimentação no artigo 6º da Constituição Federal reforça a capacidade de exigir esse direito, seja perante a própria administração pública, seja perante o Judiciário ou perante outros órgãos de proteção de Direitos Humanos, como, por exemplo, o Ministério Público. Não só os titulares de direito, como a sociedade civil e movimentos sociais, ganham mais argumentos para exigir esse direito. Os próprios gestores públicos, assim como os parlamentares, terão ainda mais argumentos para exigir medidas, recursos e ações como, por exemplo, ampliação do orçamento, para garantia do direito a alimentação.
4) Há decisões judiciais que afirmam que as normas constitucionais que traçam programas para o governo - garantia do direito a alimentação, por exemplo – ganham maior força vinculante sobre os órgãos públicos se há uma lei infraconstitucional que dispõe sobre essas metas impostas pela Constituição . O Brasil aprovou a LOSAN - Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional - que já define, de forma ampla e contemplando o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, o Direito Humano à Alimentação Adequada. Além de definir o direito à alimentação, a LOSAN estabelece que o SISAN - Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - é um instrumento importante para garantir esse direito. Assim, a previsão constitucional da alimentação como direito concede força para a concretude do SISAN, uma vez que reforça a base legal que indica para os órgãos públicos a necessidade da adoção de medidas para o funcionamento do SISAN e que obriga que sejam adotadas estratégias eficazes para garantia de segurança alimentar e nutricional de todos os habitantes do Brasil. Dessa forma, há um processo de reforço legal que é de mão dupla: a LOSAN reforça a o potencial de efetividade da CF e a CF traz uma referência importante para a LOSAN.

Importância política da inserção da alimentação como direito social previsto na Constituição Federal e da realização de uma campanha com esse propósito:

1) A crise mundial de alimentos tem como elemento de fundo os valores do capitalismo. Quando os interesses econômicos - e não o acesso ao alimento e a dignidade humana - é o que determina o planejamento da agricultura e as ações do Estado, pessoas são seriamente afetadas. Reconhecer a alimentação como direito é reagir contra os valores que tem gerado uma série de violações de direitos humanos. Esse é um ganho político relevante e que pode reforçar as ações de contestação e resistência ao que tem gerado fome, má nutrição e que tem comprometido a soberania alimentar no Brasil.
2) Quando inserimos alimentação na Constituição usamos a legalidade, um instrumento hegemônico, para apoiar lutas contra-hegemônicas, como, por exemplo, a luta pela terra e por território, a luta pelo direito à cidade, entre outras. Assim, conciliamos a luta através de uso dos instrumentos do Estado com a luta direta do povo brasileiro.
3) A campanha em si, tem uma dimensão política importantíssima. A lei, a Constituição, nada mais é que um argumento. Sem sujeitos que usem esse argumento não se pode ir longe. Assim, é muito importante que haja uma mobilização para a inclusão da alimentação no artigo 6º da Constituição Federal, porque essa mobilização vai garantir que muitas pessoas possam se apropriar desse direito e essa apropriação é a principal garantia que temos para a efetividade dessa norma, quando ela for inserida na CF. É essa apropriação o principal instrumento para garantir uma proximidade entre o que está na norma e o que está em nosso mundo real e, assim, garantir a efetividade do Direito Humano à Alimentação Adequada a todos os povos do nosso país.

Valéria Torres Amaral Burity – Advogada e consultora em Direitos Humanos. Atualmente é Vice-presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH).

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