domingo, 21 de setembro de 2008

Flavio Valente - Entrevista

"A solução para a fome está nas mãos das vítimas"
Entrevista com secretário-geral da Fian Internacional

Daniela Stefano e Eric Beauchemin

18-09-2008

Ouça entrevista com Flávio Valente (9'16)

Mudança climática, petróleo caro, produção de biocombustível, desmatamento, expulsão de povos tradicionais de suas terras, aumento do preço dos alimentos. Todos esses fatores estão relacionados à atual crise mundial de fome. Essa é a opinião do brasileiro Flávio Valente, secretário-geral da Fian Internacional, uma organização de direitos humanos que luta pelo direito à alimentação. Valente esteve em Amsterdã para participar de um debate sobre o futuro da segurança alimentar e deu uma entrevista à Radio Nederland.

Flávio Valente: "Sem dúvida nenhuma, a crise mais recente tem muito a ver com a proposta dos Estados Unidos de aumentar a quantidade de álcool na gasolina, na tentativa de reduzir a utilização de petróleo, e da decisão da União Européia de pensar em aumentar a cota."

"Só a decisão de pensar em aumentar a cota do uso de biocombustíveis provocou um enorme avanço da compra de terras, especialmente das multinacionais em todos os países do mundo, principalmente nos países do sul, que é onde existem terras que estão aparentemente livres. Na verdade essas terras não estão livres. São terras de indígenas, de afrodescendentes, ocupadas por populações tradicionais há centenas de anos."

Biocombustíveis na Europa
Na semana passada, a Comissão de Indústria e Energia do parlamento europeu aprovou um projeto de lei que aumenta para cinco por cento o uso dos biocombustíveis pelo setor de transportes no bloco em 2015, aumentando para 10% em 2020.

Flávio Valente, secretário-geral da Fian
Internacional, atua há quinze anos como
defensor de Direitos Humanos. Foi relator
nacional de Direitos Humanos no Brasil e
secretário-geral do Fórum Brasileiro de
Segurança Alimentar.
Foto: Eric Beauchemin

O projeto de lei, que deve ser votado no início de outubro pelo parlamento europeu, reduziu a meta estipulada no início desse ano, de 10%, por causa da crescente polêmica na Europa sobre os possíveis impactos negativos dos chamados biocombustíveis por contribuírem para o desmatamento, a alta do preço dos alimentos e a disputa por terras. O que significa essa medida européia do ponto de vista alimentar?

Flávio Valente: "Do ponto de vista do direito humano à alimentação e da segurança alimentar foi uma vitória ter conseguido reduzir a meta de dez para cinco por cento. Mas ficamos preocupados com o possível impacto, para a questão da segurança alimentar e das condições de trabalho no campo e da demanda por terra em vários países".

Com o aumento dos preços de alimentos, cem milhões de pessoas passaram a viver abaixo da linha da pobreza no planeta, segundo estimativas do Banco Mundial. A comunidade internacional descreve a alta dos preços de petróleo e dos alimentos como causadores da primeira crise econômica real da globalização. Quem ganha e quem perde com essa situação?

Flávio Valente: "As grandes produtoras de alimentos, como a Bunge e a Cargill aumentaram seus lucros. Certamente os especuladores da bolsa de futuro tiveram um lucro bem grande com os alimentos. Os mais afetados são os pequenos produtores que não produzem todos os seus alimentos e precisam comprar mais caro e não conseguem comprar tudo o que precisam. Os sem terra também são afetados. E ainda a população das cidades, onde se registrou o maior aumento da fome nesse um ano e meio."

Fome nas cidades
Na opinião de Flávio Valente, a crise de fome só preocupou a comunidade internacional por ter afetado os moradores dos grandes centros urbanos:

"A prova que ela não se preocupou é que faz 20, 30 anos que 850 milhões de pessoa passam fome no mundo e a comunidade internacional não conseguiu sequer diminuir esse número. A hora que a fome começou a aparecer nas áreas urbanas, a ameaçar os governos e fazer com que a população passasse a exigir mudanças para garantir sua alimentação e inclusive começaram a questionar o modelo de liberalização do comércio internacional e especialmente agrícola, é que a comunidade internacional ficou preocupada."

Na opinião de Valente, a solução está nas mãos dos mais prejudicados. Os pequenos agricultores podem produzir alimentos para a população mundial e de uma maneira sustentável:

"Existe um estudo que diz que se houver um apoio institucional sobre a forma de extensão agrícola, crédito e acesso ao mercado, os pequenos serão mais eficientes do ponto de vista de mudança climática do que a grande produção agrícola. Infelizmente a ONU não leva em consideração esse relatório porque aparentemente não satisfaz o desejo do atual parceiro das Nações Unidas que é o agronegócio."

Enquanto a correlação de forças não muda, a participação popular e a pressão para a elaboração de leis que garantam os direitos de alimentação são fundamentais para que todos no mundo possam comer, conforme explica Flávio Valente:

"A minha experiência como relator nacional de Direitos Humanos mostra que nenhum governo gosta de ser denunciado por estar matando crianças de fome. Eles tentam esconder isso ao máximo, mas não gostam de ser denunciados. Quanto mais a sociedade civil participa e se organiza, dá visibilidade aos casos de violações dos direitos humanos e, se tais casos chegarem aos organismos internacionais, começarão a existir mecanismos para que as pessoas possam recorrer."

0 Comments: