quinta-feira, 13 de março de 2008

Hai-Kai: A essência da Poesia

Hai-Kai: A essência da Poesia

Por J.B. Donadon-Leal*

Completa a obra
o vento sopra
e o tempo sobra.
(Paulo Leminski)
Não posso falar do abismo que há entre nossa cultura e a cultura do oriente. Não quero falar de abismo. Apenas me parece claro que a convivência entre brasileiros e japoneses é tão igual a convivência entre pessoas que se respeitam, embora nem sempre se compreendam. A possibilidade da convivência neutraliza a possibilidade do abismo.
Não posso explicar o haiku, a arte da poesia, tal como a concebe o oriental, pois não sou do oriente. Apenas vivi na infância uma agonia. Alguns a chamaram de “aquisição de nossa cultura pelos imigrantes japoneses”. Eram Isseis que tinham que conviver, para sobreviver, com esse ocidente lusitano instalado no sul do Brasil, e Nisseis condenados a decisões precoces: ou o oriente encasulado dos pais, ou o ocidente luso-abrasileirado, vasto e disperso, vagabundamente receptivo num primeiro momento e assumidamente assustado diante do que chamou de “japonesada persistente”.
Esse nosso ocidente, que aplica a lei da tortura cultural, pensando estar produzindo um imperialismo cultural, pois mata a vítima sem roubar-lhe a alma, sem beber-lhe o sangue e sem vender-lhe depois o substrato dela, engenhosamente adaptado à nova forma, oferece ao oriental, via desdém, a idéia da igualdade de direitos e, para tanto, impõe-lhe uma língua que apenas interpreta, pois não representa as coisas e as ações. O Issei, porém, resiste. Resiste através da união, do agrupamento e revela ao opressor atônito que a convivência de culturas tão diversas é possível, embora ciente do estado agonizante em que se encontra. Talvez seja a resistência das cigarras, como apresenta Matsuó Bashô num revelador hai-kai:
Ainda que morrendo
o canto das cigarras
nada revela!
Esse imperialismo ingênuo, mas de resultado igualmente nefasto para a própria cultura brasileira (vide o sub-imperialismo brasileiro sobre o Paraguai, do qual a vítima é o próprio Brasil, que deixa rios de dólares naquele país em troca de toneladas de falsificações) talvez tenha origem no assassinato do Nheengatu por Pombal. A língua geral, Tupi-Guarani, quem sabe, nos aproximasse da essência das coisas. Mas, o Nheengatu é outro tema. Ainda do imperialismo, talvez pudéssemos falar do imperialismo brasileiro sobre as crianças argentinas. Mas, Xuxa é voz e gesto do imperialismo americano sobre a América Católica.
O mesmo comportamento - a intenção de dizimar a cultura interferente - do colonizador português em relação ao índio é aplicado ao negro e repetido pelo brasileiro no final do século XIX em relação aos imigrantes italianos e alemães e no século XX em relação aos imigrantes japoneses. Estes, tal como foi o índio brasileiro, eram vistos como mão-de-obra, afinal eram maciçamente camponeses. Mal sabia o brasileiro que as tecnologias destes camponeses já eram infinitamente superiores às dele. E a mão-de-obra camponesa é, ainda hoje, para os brasileiros, algo não especializado, portanto não requer nem língua nem tradição. Nesse aspecto o brasileiro é vítima da incapacidade de o Brasil escolarizar sem economias de dinheiro e de informações.
Só que quem domina tecnologia mais avançada consegue fazer adaptações com mais facilidade, e logo o japonês passa a ocupar novos espaços, ao invés de somente cedê-los (como fez o índio, de tecnologia inferior à do português). Assim, embora perca muito, consegue manter a essência da cultura, numa espécie de metáfora da varrição, como diz o hai-kai de Bashô:
Varrendo o jardim
a neve é olvidada
pelo ancinho.
Um desses elementos culturais não levados ao lixo, ou ao fogo, pelo ancinho da cultura luso-brasileira da destruição mansa e de boa vizinhança, é o hai-kai. Para além da criativa aventura de Guilherme de Almeida, destacam-se dois momentos importantes de introdução do hai-kai no Brasil, ambos acompanhados heroicamente por Massao Ohno. Primeiro, é de apresentação do hai-kai, de levantamento histórico e de mostras de seus expoentes japoneses. São traduções de Bashô, Busson e Issa na voz iluminada de Olga Savary, que se serve da importantíssima introdução à percepção do hai-kai na América patrocinada por Octavio Paz. Aparece ainda com destaque Paulo Leminski, numa espécie de popularização da obra de Bashô. Segundo, o momento da divulgação das lavras nacionais, com a edição de já representativa produção de hai-kai no Brasil, desde nomes consagrados de nossa poesia contemporânea, como Leminski, Quintana, os irmãos Campos, Millôr (este responsável pela vulgarização do nome hai-kai), Abel Pereira, até os que encontraram abrigo na sensibilidade poética do editor Massao Ohno, entre os quais me encontro.
Meu primeiro contato com o hai-kai foi na adolescência. Um colega de classe, no ginásio, cujo pré-nome é Issao e cujo paradeiro desconheço o apresentou a mim:
Meu vizinho issei
quanto colega nissei
e eu deles não sei.
Levou um pequeno livro de poesia japonesa à escola e leu-as traduzindo. Era haiku, dizia ele. Ria do nome, recordo. Lembro-me apenas que eram poemas muito pequenos e aos quais dei muito pouca importância.
Volto a ter contato com esse tipo de poesia japonesa anos mais tarde, na Oficina Literária do departamento de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, com o poeta e amigo Alcides Buss. A partir daí, arrisquei hai-kais. Prendi-me inicialmente à forma. Três versos de cinco, sete e cinco sílabas, respectivamente. Mas, o hai-kai não é só essa soma de sílabas nessa seqüência de versos. Ele requer algo mais. Ele requer iluminação, ele se quer Zen. E como eu, brasileiro (um pouco Angola, um pouco Portugal e um pouco Itália) poderia atingir o espírito do Japão ou da Índia? Como perceber o espírito nas entidades naturais (árvores, rios, peixes, animais, homens) se dominado pela vigilância divina, una e indivisível pregada pelo cristianismo católico? Descobri, então, que o Zen é eclético e não vislumbra, como faz o cristianismo, nem exclusividade, nem recompensa; apenas valoriza a experiência e a contemplação do movimento das coisas, por mais estáticas que elas estejam.
Precisava eu apenas de uma maneira de produzir essa iluminação. E a encontrei na síntese. Aquilo que o oriente vê como plenitude e ao mesmo tempo como essência, o ocidente vê como síntese, dada a nossa limitação lingüística da transformação dos conceitos dos corpos, dos fatos e dos movimentos em coisas. Essa nossa visão estática do mundo limita a percepção dos movimentos contínuos do universo. No máximo, nossa língua nos permite alcançar uma macroestrutura dessas coisas em movimento, ou um tema a ser extraído de um texto. Ao contrário, o oriental tematiza os movimentos, mesmo se estes se mostram na estática. Ainda concluí que os elementos cristãos podem conviver com elementos budistas, shintoístas, islâmicos, judeus, etc... É um desafio à visão religiosa cristã excludente do mundo ocidental - Alá exclui Javé que exclui Jesus, que exclui Tupã. Assim é possível, pelo desafio, um mesmo conjunto de poemas conter elementos cristãos, budistas, indígenas e se Zen:
Hakaná, haná
te enfeitam, Templo Sagrado,
c’oas bênçãos de Buda.

Catita é infância,
regendo o coro da fé
qu’inda canta em mim.

Na repleta paz,
corpo e alma em harmonia,
se encontra o Nirvana.

Em vão argumenta
o Verbo em carne, no padre,
diante do ateu.

Nasci Caiuá
sem ter visto tribo alguma
nas terras de lá.
A síntese das experiências mais singelas aproxima o poeta haicaísta, o haijin, a essa iluminação eclética da visão Zen do mundo. É uma espécie de aproximação às coisas que não são vistas, nem percebidas porque são muito presentes à vida cotidiana. Quem sabe seja a verbalização do subconsciente, entendendo-se as coisas do subconsciente como aquelas que se tornaram mecânicas, porque são extremamente conhecidas, portanto não mais percebidas. O haijin passa a atuar nesse intervalo de percepção poética, resgatando as atividades mecânicas e corriqueiras e colocando-as no lugar das coisas essenciais para a constituição de uma vida saudável; plenamente saudável na mente e no corpo. Ele relata dos fazeres singelos e mecânicos a harmonia necessária para o equilíbrio dos universos humano e material.
Um barulho:
Som da lenta chuva,
entoando uma canção
que rádio não toca.

Uma paisagem:
Casinha de palha
lá no meio da pastagem
não é só. Assunta!
Um trabalho:
Viver ikebana
é eternizar jardins
na palma da mão.

Um processo:
Só galhos no inverno,
rebentos na primavera,
caquis no verão.
Uma homenagem:
Mestre no Kanji,
sabedoria de rio:
Matsuó Bashô.
Essa poesia, o hai-kai, enfim, embora eu a trabalhe preso à forma canônica, não está na forma, mas na essência. A forma é por mim utilizada como envelope dessa essência, dessa minha exteriorização das percepções dos mínimos movimentos que consigo ver nas minhas experiências de vida. Essa forma atua como um caminho para a realização da síntese requerida pelo hai-kai, e uma forma de driblar as limitações da Língua Portuguesa nas formulações de conceitos breves. Tudo isso é presente na língua, na forma de ser Zen do oriental. Para mim, está no Dô, no caminho da síntese, no caminho da essência.
Julgava se eu
imune ao fingir do verbo,
mas me vi poeta.
Quanto à leitura, o hai-kai não é para ser interpretado. Ele é para ser sentido, degustado. A leitura do hai-kai deve ser lenta como lento deve ser a degustação de um bom vinho. Ele é uma lente através da qual podemos ver as coisas simples sobre as quais passamos a todo momento sem percebê-las. Uma poça de água, um bule de café, um pezinho de criança, a fumaça de um cigarro, uma flor, uma boneca, um inseto, uma coisa qualquer. Ele desperta o conjunto dos sentidos, pois ele tem o cheiro e o sabor das coisas, faz o barulho delas, mostra e tateia suas formas. Por isso, o hai-kai não pode ser apenas interpretado, ele deve ser visto, ouvido, tocado, cheirado e saboreado vagarosamente. Como isso é possível? De tão breve que ele é em suas dezessete sílabas, quem experimentar essas provocações que lanço, terá, como quem vê pela primeira vez entre as formas repetidas e sobrepostas emergir o desenho do quadro tridimensional, um grande susto e a satisfação de ter alcançado aquilo que não via e era tão óbvio.

Eis o caminho da poesia, eis a sua essência, eis o hai-kai.
*JOSÉ BENEDITO DONADON-LEAL
Poeta, Ensaísta, Doutor em Semiótica e Lingüística pela USP,
Pós-Doutor em Análise do Discurso pela UFMG
Professor de Lingüística da UFOP.
jbdonadon@hotmail.com

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