terça-feira, 20 de maio de 2008

A questão alimentar no Brasil, sob a visão da Conab

A questão alimentar no Brasil, sob a visão da Conab
Entrevista

A tese defendida por alguns especialistas de que o etanol e o biodiesel brasileiros avançam sobre a produção de alimentos, provocando alta nos preços dos produtos, é duramente criticada pelo presidente da Conab, Wagner Rossi. Ao reagir às declarações sobre o avanço dos biocombustíveis no país e ao possível desabastecimento de alguns alimentos, ele classifica essas análises como especulações descabidas do mercado e desconhecimento dos especialistas estrangeiros, ao colocarem no mesmo patamar a realidade do etanol de cana-de-açúcar do Brasil com o subproduto extraído do milho nos Estados Unidos. Nesta entrevista ao Conab em Foco , Rossi destaca que não há crise de alimentos no país e que a Companhia está pronta para aumentar ainda mais a capacidade do Brasil como grande exportador.
CONAB EM FOCO - O crescente interesse mundial pelos biocombustíveis, notadamente o etanol, tem provocado em vários países discussões sobre a competição do uso da terra para a produção de alimentos e de energia. O etanol e os alimentos podem ser parceiros ou são incompatíveis?
WAGNER ROSSI – É preciso analisar o assunto separadamente. No caso brasileiro, não há nenhum problema de incompatibilidade entre o programa de biocombustíveis, como o etanol de cana-de-açúcar, e a produção de alimentos. Em primeiro lugar, dos quase 300 milhões de hectares de terras cultiváveis no Brasil (um terço do total), apenas 7,8 milhões, ou 2,8% desta área, são destinados à cana. Os alimentos representam 48 milhões ou cerca de 17% da área cultivada. O restante das terras, cerca de dois terços, está ocupado por pastagens naturais ou é simplesmente inaproveitável. Isso significa que podemos dobrar, triplicar, quadruplicar a área de grãos e de cana sem criar conflitos. Não há incompatibilidade. Para se ter idéia, para um aumento de aproximadamente 50% da área plantada de grãos no país, nos últimos vinte anos, obtivemos um crescimento da produção de mais de 150%. Isto porque temos hoje tecnologia avançada e uma agricultura que potencializou a sua produtivida de. O nosso programa de etanol é fundamental para o país e o mundo. Temos mais de 30 anos de experiência neste setor. Grande quantidade de nossos automóveis é movida a álcool e outro percentual do combustível é adicionado à gasolina. Somos, talvez, o único país no mundo que dispõe de capacidade para crescer em alimentos e agroenergia limpa e renovável, sem prejudicar o meio ambiente ou a floresta amazônica.
Nas últimas semanas, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que a produção do etanol brasileiro não tem relação com a crise alimentar no mundo. Essa posição reforça o diferencial do Brasil?
Eu acho que a ONU fez críticas genéricas e se deixou levar, num primeiro momento, por informações equivocadas. A Europa não tem muita visão da dimensão brasileira. Eles conhecem o nosso país, mas não em detalhe. É muito fácil criar uma visão equivocada, dizendo que o aumento do plantio de cana no Brasil ameaça a floresta amazônica. Eles não sabem que a floresta amazônica está muito distante dos centros produtivos, que são o Centro-Sul e o Centro-Oeste, e que o cultivo não oferece risco à biodiversidade. Sabemos que isso é impossível, até por motivos agronômicos. A Amazônia não se presta à produção de alimentos ou de agroenergia. Os biocombustíveis não acabam com todos os nossos problemas, mas também não são responsáveis pela fome. Ao contrário, podem até ser um grande aliado contra as mudanças climáticas e com impactos positivos sobre o meio ambiente. Os europeus erraram, ao colocar na mesma discussão o nosso etanol daquele que é fabricado pelos americanos a partir do milh o. Este sim, pode afetar os preços dos alimentos. Como houve no Brasil uma reação muito forte dos órgãos governamentais e privados nesse episódio, a verdade prevaleceu; uma verdade científica que qualquer um pode comprovar.
Este seria um dos motivos para o aumento dos preços e a falta de alimentos?
Acredito que os principais fatores são a alta extraordinária do petróleo e as conseqüências que acarretam nos insumos agrícolas, como no transporte e em alguns defensivos. A especulação financeira é outro fator. Com a crise do Subprime (hipoteca de risco) nos Estados Unidos houve uma migração para os fundos de commodities, e isso transformou um mercado que era voltado ao abastecimento mundial em uma ciranda financeira, criando dificuldades e ajudando a inflacionar os preços dos alimentos. Veja que falo de razões que não têm nada a ver com a agricultura. São problemas provocados por outros setores produtivos: energia, no caso o petróleo, e razões de natureza financeira. Além disso, houve um fator especulativo no mercado agrícola nacional. Claro, e é compreensível que haja, como no caso do preço do arroz que, mesmo sem crise, subiu acentuadamente. A Conab, cumprindo uma política governamental, vem colocando estoques públicos no mercado para impedir uma subida exagerada nos p reços.
Qual o papel da Conab nas políticas de abastecimento alimentar do país?
A Conab tem hoje três grandes vertentes. A primeira é ser um importante centro de informações do agronegócio. Não se faz planejamento sem dados confiáveis e de qualidade, e o produtor sabe disso. Em segundo lugar, a Conab tem operações de apoio direto ao produtor em todos os níveis, por meio de vários instrumentos, como o PEP, Pepro, Compra Direta e o Vendas em Balcão. A estatal tem sido um agente indispensável para a equalização de oportunidades, seja para o grande ou para os agricultores familiares. Mas, há deficiência em outras áreas, não nego. Abandonamos uma política de estoques públicos regulatórios e estratégicos, por exemplo, e entramos no apoio direto à comercialização, de forma a não precisar fazer estoques. No entanto, não podemos deixar de ter um estoque mínimo como segurança. Há países onde o estoque estratégico equivale a seis meses de consumo da população e outros, como os Estados Unidos, que estão sujeitos a intempéries muito violentas, estendem, em alguns casos, em até um ano. No Brasil não precisamos de estoques dessa natureza. Precisamos manter o consumo de um mês ou dois, para superarmos situações de catástrofes atmosféricas. O estoque regulador, para intervir no mercado, esse é menos necessário, pois o nosso agricultor está mais preparado. Além do mais, a política de estoques tem custos logísticos e de armazenagem elevados. No ano passado, acabamos com o milho que estava armazenado há quatro, cinco anos. Vamos acabar agora com o arroz de cinco anos atrás. Isso porque temos condições de renovar rapidamente os nossos estoques. Essa é a política atual. A terceira vertente é o apoio à agricultura familiar, que no Brasil é responsável pela maioria dos alimentos que está na mesa do brasileiro. Incentivamos esse grupo de produtores por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e de outras ações.
Esse diferencial da agricultura familiar seria suficiente para impedir uma possível crise de alimentos?
Acredito que sim. Principalmente porque estamos estruturando políticas que vão reforçar ainda mais esta área, como um diferencial nos preços mínimos. Defendemos que o pequeno deve ter um preço mínimo maior, pois eles têm custos também maiores. Para que não haja injustiça, uma parte da produção do grande também seria beneficiada. Este, por dispor de mais recursos, já utiliza toda a sua propriedade. Já o agricultor familiar, que tem menos dinheiro, só consegue aumentar suas áreas de plantio aos poucos. Assim, com mais incentivos, estes podem dar uma resposta mais rápida para o aumento da produção de alimentos.
A discussão em torno do arroz está em evidência. Como este, outros produtos, a exemplo do feijão, milho e trigo, estão presentes também no prato do brasileiro. Que políticas a Conab vêm adotando para impedir que uma futura crise chegue a esses alimentos?
Precisamos pontuar fortemente que no Brasil não há crise de alimentos. Nós produzimos com excedentes todos os produtos básicos de alimentação que o povo consome, com exceção do trigo. Temos excedentes na produção de arroz, café, carne, feijão, milho, mandioca, soja. O que ocorre com o trigo é uma opção brasileira. Na verdade, como os nossos vizinhos produzem em condições climáticas mais adequadas, a preços razoáveis, nós optamos em um certo momento por manter uma cultura de trigo menor no Brasil, embora esteja atuante, produzindo cerca de 4 milhões de toneladas. Importamos dois terços, que representam uns 7 a 8 milhões de toneladas. O ministro Reinhold Stephanes acabou de lançar um plano para incentivar o aumento da produção deste cereal. Fora o trigo, não há escassez em nenhum outro alimento, nem possibilidade de desabastecimento. O que ocorre é que, de certa forma, importamos um componente psicológico da crise. Começamos a perceber que no mundo havia falta de alimentos, o noticiário intensificou esse assunto e ao mesmo tempo havia um movimento especulativo interno. O produtor, sobretudo o de arroz, que havia perdido dinheiro nos últimos quatro anos, tendo a oportunidade de recuperar, é natural que tentasse ganhar dinheiro. Entramos no mercado vendendo arroz e com isso já houve uma certa contenção. Na verdade, essa especulação não é feita pelo produtor, pois grande parte do arroz que estava na mão dele já foi vendida a R$ 22, o preço mínimo da época. Os que atravessam o mercado e compram para ter lucro na valorização dos estoques é que operam essa especulação. De qualquer forma, os produtores que chegaram até agora com o seu produto vão se beneficiar. Nossa realidade é totalmente diferente da de outros países. É claro que há razões estruturais para que os preços cresçam substancialmente. Um desses motivos é o aumento do consumo. Estatísticas mostram que, nos últimos cinco anos, a China e a Índia colocaram no mercado consumidor algo em torno de um bilhão de pessoas, quase sete vezes a população do Brasil. Além disso, muitos países melhoraram a sua condição social, gerando empregos e, conseqüentemente, alimentando mais os cidadãos.
Sobre esse aspecto, no Brasil é diferente?
Sim, o Brasil é exemplar na questão de abastecimento. O presidente Lula implantou uma política social que mudou o patamar alimentar do nosso povo com as ações do Fome Zero, antes e depois do Bolsa Família. Incorporou ao mercado consumidor um contingente de brasileiros que antes estava totalmente excluído, que vivia abaixo da linha da miséria. Isso gerou demandas nutricionais. Mas o Brasil teve condições produtivas para atender integralmente esse aumento, graças a nossa agricultura de ponta. Sendo assim, os países com maior potencial de produção, como o nosso, são mais demandados por aqueles que têm deficiência nesta área. Com a oportunidade de ganhar mais dinheiro, alguns elevam seus preços de exportação, o que faz parte do jogo, infelizmente. O que não podemos permitir é que esta crise seja importada para a nossa realidade, que é diferente.
Alguns especialistas acreditam que este é o momento de o Brasil ganhar...
Eu defendo que o Brasil aproveite esta crise para se consolidar como um grande país exportador de alimentos. Como já falei, temos essa consolidação na soja, açúcar, café, carnes e vamos fazer o mesmo com o milho. Pela primeira vez, vamos passar de importadores a exportadores deste grão. Em função do aumento especulativo de preços, o Ministério da Agricultura impediu momentaneamente exportações do estoque público para garantir que tivéssemos meios de intervir no mercado interno, caso haja um aumento exagerado do produto. Mas a Conab tem excedentes de arroz, e no momento em que o mercado se estabilizar, poderemos, ainda neste ano, exportá-lo. Os preços firmes do milho vai nos garantir uma produção maior no ano que vem.
Esse aumento requer boas estruturas, como equipamentos, transportes e armazéns para atender a demanda. O Brasil está preparado?
Primeiro, acho que há uma supervalorização na questão das deficiências do país em infra-estrutura logística. Temos problema, mas não com a dimensão que é apresentada. O país tem uma matriz de transportes centrada na rodovia. Mas o caminhão prestou um enorme e extraordinário serviço ao desenvolvimento do Brasil. Se não fosse por ele não teríamos essa expansão para o Oeste, já que os investimentos em ferrovias para atingirem todas as linhas são muito altos. Em substituição, o caminhão é um veículo extremamente maleável e isso, apesar de um custo também elevado, representa variáveis importantes na economia, como a rapidez. Atualmente, há estudos para a expansão da rede ferroviária, hidroviária e de cabotagem, ainda pouco usadas no Brasil e, no futuro, esses modais certamente serão mais freqüentes.
A Conab está implementando um plano de reestruturação da rede armazenadora. Isso vai implicar em maior capacidade estática?
O Brasil tem capacidade de armazenar algo em torno de 125 milhões de toneladas de grãos. Nossa safra está projetada em 142 milhões de toneladas. Existe uma falsa idéia de que é preciso o mesmo tamanho para abrigar a colheita. É um erro, pois a produção não entra de um única vez nos armazéns. A nossa capacidade é perfeitamente compatível com o que produzimos. Pode haver deficiências de armazenagem em algumas regiões na fronteira agrícola, mas grande parte da produção hoje é comercializada com antecedência. Em muitos casos, a colheita vai direto para exportação, sem passar pelos silos. O que é preciso hoje é construir armazéns nas fazendas, dando aos produtores condições para comercializar a colheita no momento mais oportuno.
A logística voltada aos portos brasileiros, por onde é escoada boa parte da safra, também é deficitária...
Os nossos portos receberam investimentos mínimos, porque o Brasil optou pela sua privatização, o que está certo. Mas a venda foi apenas de suas operações. Os portos permaneceram como entes públicos. Apesar das carências, eles estão aí, dando conta de um aumento enorme de exportações. Não podemos confundir problemas dos portos com greve da Receita Federal, com cartel de operadores, com paralisação de fiscais da agricultura etc. De qualquer maneira, há necessidade de outros investimentos, principalmente na área de dragagem, o que vai possibilitar a utilização de navios de maior calado, mais econômicos. Existe um choro tradicional contra o governo e contra a infra-estrutura brasileira. Chegaram até a cunhar a expressão Custo-Brasil. Na verdade, todo o país que se expande rapidamente, sobretudo na fronteira agrícola, tem problemas estruturais que só são equacionados com o tempo. Mas estamos movimentando a produção sem perder quantidade nem qualidade, o que já é muito. A Conab tem um papel importante nisso, pois, pegamos determinado grão onde há muita oferta e levamos para regiões com déficits, como estamos fazendo agora com o milho, a um preço com paridade ao praticado nas importações. Tudo isso é feito porque temos políticas públicas consistentes de apoio à agricultura, o que não havia no passado.
Alguns estudos mostram que o Brasil chega a desperdiçar no pós-colheita até 10% do que produz. Como o senhor avalia essa questão?
A perda, seja por transporte ou outros fatores, existe de fato. Precisamos diminuí-la. Mas isso é mais ou menos natural. A nossa perda por transporte pode ser comparada à da água. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 40% do líquido se perde por deficiência de infra-estrutura. Poderíamos falar também da perda de eletricidade. Naturalmente, isso vai sendo melhorado. Acredito que, com o avanço tecnológico e os investimentos, teremos mais alternativas para combater o desperdício, como a utilização do potencial extraordinário dos nossos rios com o transporte aquaviário, o aperfeiçoamento de nossos equipamentos rodoviários, nossas estradas, ferrovias, silos e armazéns.
No próximo mês, faz um ano que o senhor assumiu a presidência da Conab. Qual a avaliação desse período?
A Conab é um órgão executor público com indispensável trabalho para o país. A sua importância para a sociedade pode ser medida, de certa forma, pelas notícias publicadas na imprensa, onde cerca de 90% delas fazem referências positivas sobre as suas atividades. A Companhia tem técnicos da mais alta qualificação. Onde há um problema agrícola no Brasil, a Conab está presente e sempre atuante. Queremos que o produtor tenha boa remuneração, para que ele expanda a sua produtividade e para que os preços dos alimentos cheguem ao consumidor em níveis aceitáveis. Não consigo enxergar as políticas de segurança alimentar nacional sem a interferência da Conab.

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