quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Homenagem ao centenário de Josué de Castro

Discurso feito na Assembléia de Minas Gerais, dia 13 de outubro de 2008.
Em homenagem ao centenário de Josué de Castro


Senhoras e senhores, em especial, militantes do direito humano à alimentação adequada e segurança alimentar e nutricional sustentável

Este ano de 2008 está repleto de significados para todos nós e aqui gostaria de, junto ao centenário de Josué de Castro, recordar mais duas importantes celebrações: a dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também 60 anos da primeira publicação do livro "Pedagogia do Oprimido", de Paulo Freire. Aliás, quero neste espaço fazer uma reflexão sobre o pensamento de Josué e de Paulo, dois pernambucanos, repletos de amor pelo seu país e pela sua gente e que, igualmente, foram expulsos do Brasil por manifestar, convicta e amorosamente, a defesa dos direitos humanos numa época de repressão e cerceamento desses mesmos direitos em nosso país. Nosso objetivo, nesta reflexão é, à luz da Pedagogia do Oprimido, fazer a releitura de Josué de Castro para identificar, em sua vida e em sua obra, aspectos que nos ajudem a fortalecer nossa luta pelo direito humano à alimentação adequada.
O pensamento de Josué de Castro nasce da vida de seu povo, de seu olhar que se alimenta de sua própria história de vida e da vontade de transformar aquela realidade que o indignava. Esta é a primeira característica significativa da vida e da obra de Josué: o de partir da realidade do povo, para com ele, emergir das situações de opressão mascaradas como naturais e de desejo divino.
Homem do pensamento e também da ação, dialogando com o conhecimento vivo de sua gente e com os livros e pesquisas da academia, Josué propôs e vivenciou uma práxis transformadora da realidade. Ensinou-nos, assim, que a ciência, o conhecimento humano só tem sentido se é capaz de explicar a realidade e produzir instrumentos capazes de modificar as situações que não permitem ao ser humano descobrir-se como tal, em sua plenitude.
Josué reconheceu e sofreu os limites de uma sociedade estruturada sobre a desigualdade, fazendo-se profeta de seu povo e de toda a raça humana. Denunciou uma forma de desenvolvimento, que perdura nos dias atuais, na qual a vida humana e a natureza são desvalorizadas pela ganância das pessoas que comandam o mundo econômico, baseadas num único valor, o do lucro. E que disfarçam essa sua sede destrutiva com um discurso desenvolvimentista. Ao mesmo tempo, Josué anunciou as possibilidades de exterminar a miséria e a fome do mundo. Muitas das ações defendidas por ele nós ainda estamos lutando para ver acontecer de fato, como: a reforma agrária, a valorização da agricultura familiar, uma educação de qualidade, um desenvolvimento e uma economia sustentáveis, a humanização do trabalho e as relações de cooperação internacional.
Ocupando-se do mundo das ciências e da política, não desfez-se de sua alma de cantador nordestino. Emprestou ao raciocínio sistemático das ciências a arte da poesia para descrever os cenários de vida e morte severinas, enxergando também nos homens e mulheres de outras terras e outros mares e rios, os mesmos olhos da fome e os mesmos olhares de uma esperança quase morta. Recordo aqui as palavras de Paulo Freire, em sua dedicatória logo no início de seu livro "Pedagogia do Oprimido": "Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam". Como alguém que se descobre junto aos esfarrapados, Josué chama-nos à razão mais dolorida de que a fome é um flagelo imposto por homens a outros homens. Não só reconhece, como revela a historicidade humana e sua dimensão transcendente, como nos explica o mestre Paulo: "Dai, a necessidade que se impõe de superar a situação opressora. Isto implica no reconhecimento crítico, na "razão" desta situação, para que, através de uma ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibilite aquela busca do ser mais".
Dos mangues do Capibaribe às solenes reuniões com autoridades internacionais, Josué foi poeta de sua gente, de seu chão dos quais nunca se esqueceu e para os quais foi proibido de retornar. Se as terras pernambucanas, afagadas pelas águas do Capibaribe, não puderam embalar seu último sono, elas fizeram ecoar, por toda parte, o canto poético do menino que olhava o rio "com olhos ávidos de criança". Josué nos ensina que nossa voz não deve se calar diante da brutalidade que é a fome, e que grande parte de sua derrota está em pensar num outro tipo de desenvolvimento, num outro tipo de economia, num outro mundo possível, embora nos alerte em sua obra "Sete palmos de terra e um caixão": "Mas a luta por tais reformas não é uma luta fácil. É a luta de um povo contra um sistema, na verdade decadente, mas possuindo aliados extremamente fortes e poderosos. É este sistema de forças que vem impedido a adoção de quaisquer reformas que toquem mesmo de leve nesta estrutura social periclitante, extremamente frágil em seus esteios político-sociais, mas extremamente forte nos seus instrumentos de escamoteação e de repressão da vontade popular".
Recordo aqui os quatro setores de atividades que Josué ajudou a planejar para a Associação Mundial de Luta Contra a Fome, a Ascofam, que muito ainda servem ao momento atual:
O primeiro setor diz respeito às atividades visando a sensibilizar e despertar a consciência universal acerca da significação e da expressão social do problema da fome.
O segundo é a realização de pesquisas, investigações e inquéritos que permitam o conhecimento integral do problema da fome, de suas causas e efeitos, em diferentes quadros geográficos e dos meios mais eficazes para remover os fatores que intervêm nesta calamidade.
No terceiro setor está a formação de pessoal capacitado para as múltiplas tarefas que se impõem aos planos de desenvolvimento das regiões subdesenvolvidas do mundo, onde grassa a fome em massa.
Por fim, o quarto setor responde à elaboração de projetos específicos de âmbito nacional ou regional, visando a incrementar o desenvolvimento econômico e melhorar as condições de vida e de alimentação dos grupos humanos mal alimentados.
E para nós que nos dispomos a mobilizar, organizar e articular a sociedade, principalmente os setores populares, para o enfrentamento das condições que geram a fome e a miséria, reforço o pensamento de Paulo Freire: "A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação".
E, para encerrar, peço a permissão de Ana Maria Castro, para dirigir a todos nós uma lição que seu pai lhe transmitiu por carta, durante o exílio. Diz ele: "Estou com você, não só tudo irá passar, mas capitalizaremos a única forma de capital que deve ser acumulado ao máximo – o respeito à dignidade humana. Seremos cada vez mais respeitados".

Suzana Costa Coutinho
Educadora Popular
Conselheira do Consea-MG - CRSANS Sul 1

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