Escritor uruguaio lança seu livro mais recente: "Espejos. Una historia casi universal". Em tom de crônica poética, obra passeia por temas como arte, desigualdade, feminismo, mídia, impérios e resistências. "Le Monde Diplomatique" publica uma seleção de trechos, cedidos e escolhidos pelo próprio autor
Eduardo Galeano
Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos nos lembram.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, eles se vão?
Este livro foi escrito para que não partam.
Nestas páginas unem-se o passado e o presente.
Renascem os mortos, os anônimos têm nome:
os homens que ergueram os palácios e os templos de seus amos;
as mulheres, ignoradas por aqueles que ignoram o que temem;
o sul e o oriente do mundo, desprezados por aqueles que
desprezam o que ignoram;
os muitos mundos que o mundo contém e esconde;
os pensadores e os que sentem;
os curiosos, condenados por perguntar, e os rebeldes e
os perdedores e os lindos loucos que foram e são o
sal da terra
Fundação da poluição
Os pigmeus, que têm corpo pequeno e memória grande, recordam os tempos de antes do tempo, quando a terra estava acima do céu.
Da terra caía sobre o céu uma chuva incessante de pó e de lixo, que sujava a casa dos deuses e lhes envenenava a comida.
Os deuses estavam, havia uma eternidade, suportando essa descarga sebosa, quando sua paciência acabou.
Enviaram um raio, que partiu a terra em dois. E através da terra aberta lançaram para alto o sol, a lua e as estrelas, e por esse caminho subiram eles também. E lá em cima, distante de nós, a salvo de nós, os deuses fundaram seu novo reino.
Da terra caía sobre o céu uma chuva incessante de pó e de lixo, que sujava a casa dos deuses e lhes envenenava a comida.
Os deuses estavam, havia uma eternidade, suportando essa descarga sebosa, quando sua paciência acabou.
Enviaram um raio, que partiu a terra em dois. E através da terra aberta lançaram para alto o sol, a lua e as estrelas, e por esse caminho subiram eles também. E lá em cima, distante de nós, a salvo de nós, os deuses fundaram seu novo reino.
Desde então, estamos embaixo.
Fundação da beleza
Estão ali, pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas.
Estas figuras, bisões, alces, ursos, cavalos, águias, mulheres, homens, não têm idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo a cada vez que alguém as olha.
Como eles conseguiram, nossos remotos avós, pintar de maneira tão delicada? Como eles conseguiram, esses brutos que de mão limpa lutavam contra as feras, criar figuras tão cheias de graça?Como eles conseguiram desenhar essas linhas voadoras que escapam da rocha e se vão para o ar? Como eles conseguiram …?
Ou seriam elas?
Fundação da arte de te desenhar
Em algum leito do golfo de Corinto, uma mulher contempla, à luz do fogo, o perfil de seu amante adormecido.
Na parede, reflete-se a sombra.
O amante, que jaz ao seu lado, partirá. Ao amanhecer partirá para a guerra, partirá para a morte. E também a sombra, sua companheira de viagem, partirá com ele e com ele morrerá.
Ainda é noite. A mulher recolhe um tição entre as brasas e desenha, na parede, o contorno da sombra.
Esses traços não partirão.
Não a abraçarão e ela sabe disso. Mas não partirão.
Fundação literária do cão
Argos foi o nome de um gigante de cem olhos e de uma cidade grega há quatro mil anos.
Também se chamava Argos o único que reconheceu Odisseu, quando chegou, disfarçado, a Ítaca.
Homero nos contou que Odisseu regressou, ao final de muita guerra e muito mar, e se aproximou de sua casa fazendo-se passar por um mendigo enfermiço e andrajoso.
Ninguém se deu conta de que ele era ele.
Ninguém, salvo um amigo que não sabia mais latir, nem podia caminhar, nem sequer se mover. Argos jazia, às portas de um galpão, abandonado, crivado pelos carrapatos, esperando a morte.
Quando viu, ou talvez farejou, que aquele mendigo se aproximava, levantou a cabeça e abanou o rabo.
Fundação do machismo
Fundação do machismo
De uma dor de cabeça pode nascer uma deusa. Atena brotou da dolorida cabeça de seu pai, Zeus, que se abriu para lhe dar à luz. Ela foi parida sem mãe.
Tempos depois, seu voto foi decisivo no tribunal dos deuses, quando o Olimpo teve que pronunciar uma sentença difícil.
Para vingar seu pai, Electra e seu irmão Orestes haviam decepado, de uma machadada, o pescoço de sua mãe.
As Fúrias acusavam. Exigiam que os assassinos fossem apedrejados até a morte, porque a vida de uma rainha é sagrada e quem mata a mãe não tem perdão.
Apolo assumiu a defesa. Sustentou que os acusados eram filhos de mãe indigna e que a maternidade não tinha a menor importância. Uma mãe, afirmou Apolo, não é mais que o sulco inerte onde o homem planta sua semente.
Dos treze deuses do júri, seis votaram pela condenação e seis pela absolvição.
Atena decidia o desempate. Ela votou contra a mãe que não teve e deu vida eterna ao poder masculino em Atenas.
Fundação dos contos de fadas
Fundação dos contos de fadas
No início do século dezoito, Daniel Defoe, o criador de Robinson Crusoe, escreveu alguns ensaios sobre temas de economia e comércio. Em um de seus trabalhos mais difundidos, Defoe exaltou a função do protecionismo estatal no desenvolvimento da indústria têxtil britânica: se não fosse pelos reis que tanto ajudaram o florescimento fabril com suas barreiras aduaneiras e seus impostos, a Inglaterra continuaria sendo uma fornecedora de lã crua para a indústria estrangeira. A partir do crescimento industrial da Inglaterra, Defoe podia imaginar o mundo do futuro como uma imensa colônia submetida a seus produtos.
Depois, à medida que o sonho de Defoe ia se tornando realidade, a potência imperial foi proibindo, por asfixia ou a tiros de canhão, que outros países seguissem seu caminho.
Quando chegou ao topo, chutou a escada – disse o economista alemão Friedrich List.
Então, a Inglaterra inventou a liberdade de comércio: em nossos dias, os países ricos continuam contando esse conto aos países pobres, nas noites de insônia.
Fundação da linguagem
Fundação da linguagem
Em 1870, ao final de uma guerra de cinco anos, o Paraguai foi aniquilado em nome da liberdade de comércio.
Nas ruínas do Paraguai, sobreviveu o primeiro: entre tanta morte, sobreviveu o nascimento.
Sobreviveu a língua original, a língua guarani, e com ela a certeza de que a palavra é sagrada.
A mais antiga das tradições conta que nesta terra cantou a cigarra carmim e cantou o gafanhoto verde e cantou a perdiz e então cantou o cedro: da alma do cedro ressoou o canto que na língua guarani chamou os primeiros paraguaios.
Eles não existiam.
Nasceram da palavra que os nomeou.
Fundação de Hollywood
Fundação de Hollywood
Cavalgam os mascarados, túnicas brancas, brancas cruzes, tochas ao alto: os negros, famintos de brancas donzelas, tremem diante destes cavaleiros vingadores da virtude das damas e da honra dos cavalheiros.
Em pleno auge dos linchamentos, o filme de D. W. Griffith, O nascimento de uma nação, eleva seu hino de louvor à Ku Klux Klan.
Esta é a primeira superprodução de Hollywood e o maior êxito de bilheteria de todos os anos do cinema mudo. É, também, o primeiro filme que estréia na Casa Branca. O presidente, Woodrow Wilson, o aplaude de pé. O aplaude, se aplaude: este defensor da liberdade é o autor dos principais textos que acompanham as épicas imagens.
As palavras do presidente explicam que a emancipação dos escravos foi uma verdadeira derrocada da Civilização no Sul, o Sul branco sob os calcanhares do Sul negro.
A partir de então, reina o caos, porque os negros são homens que ignoram os usos da autoridade, exceto suas insolências.
Mas o presidente acende a luz da esperança: Por fim foi dada à luz uma grande Ku Klux Klan.
E até Jesus em pessoa desce do céu, no final do filme, para dar sua bênção.
Fundação do FaroesteOs cenários dos filmes do Oeste, onde cada revólver disparava mais balas que uma metralhadora, eram aldeias miseráveis, onde o único som eram os bocejos e os bocejos duravam muito mais que as badernas.
Os cowboys, esses taciturnos cavalheiros, cavaleiros empertigados que atravessavam o universo resgatando donzelas, eram peões mortos de fome, sem nenhuma companhia feminina além das vacas que fustigavam, através do deserto, arriscando a vida em troca de um salário de fome. E não se pareciam nem um pouquinho com Gary Cooper, nem com John Wayne, nem com Alan Ladd, porque eram negros ou mexicanos ou brancos desdentados que nunca haviam passado pelas mãos de uma maquiadora.
E os índios, condenados a trabalhar como extras no papel de maus, perversos, nada tinham a ver com esses débeis mentais, emplumados, mal pintados, que não sabiam falar e uivavam em volta da diligência crivada de flechadas.
A saga do Faroeste foi a invenção de um punhado de empresários vindos da Europa Oriental. Estes imigrantes tinham bom olho para o negócio, Laemmle, Fox, Warner, Mayer, Zukor, que nos estúdios de Hollywood fabricaram o mito universal de maior sucesso do século vinte.
Mais Espejos. Una historia casi universal foi lançado em abril, simultaneamente na Argentina, Espanha e México. Ainda não disponível em português, a obra pode ser adquirida pela internet. No jornal mexicano La Jornada é possível encontrar uma longa entrevista com o autor (traduzida para o português e reproduzida pela agência Carta Maior) e uma crítica alentada do livro, por Jorge Gomez Naredo.
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