segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A fome nos tempos das supersafras

A fome nos tempos das supersafras

Marília Mendonça Leão

Vivemos o paradoxo de sermos um grande produtor de alimentos sem, contudo, conseguirmos distribuí-los eqüitativamente

Existe fome no Brasil? A resposta, infelizmente, é sim. Como o tema é complexo, tem provocado debates acalorados e confrontos entre argumentos acadêmicos, metodológicos e, sobretudo, políticos. A fome e a pobreza são fenômenos que andam juntos, dramaticamente complementares e sinérgicos. Um potencializa o outro. Formam o círculo perverso da miséria e da violação do direito humano à alimentação.

A fome não é um fenômeno que se instala do dia para a noite. É um processo que vai se impondo progressivamente. Primeiro, vem a carestia de bens materiais, seguida pela falta de bens de consumo e, por último, faltam os alimentos. Falta moradia digna, escola, serviços de saúde, vestimenta, dignidade e, por fim, falta comida. Falta tudo, é fome. As famílias, em qualquer lugar do mundo, utilizam estratégias para driblar a fome. Não falam, mas praticam. Procuram alimentos mais baratos e densamente calóricos, diluem alimentos, reduzem a quantidade de refeições. Como última medida, diminuem a comida no prato. Ainda como derradeira e penosa liturgia, reduzem o alimento das crianças.

A fome, portanto, possui componentes quantitativos, qualitativos, psicológicos, econômicos e sociais. Estar livre da fome e ter acesso regular e permanente a uma alimentação adequada é direito fundamental de cada brasileiro, indispensável à realização dos direitos constitucionais. Mas, como medir a violação desse direito? Como medir a (in)segurança alimentar e nutricional? Não existe um "medidor" único que reflita todas as dimensões do problema. Existem indicadores capazes de captar determinadas dimensões, mas nenhum informa todas as variáveis.

Pesar e medir as pessoas é um modo ótimo de verificar déficits e excessos alimentares, atuais ou pregressos. São os chamados indicadores antropométricos. Baseiam-se em método universal e geram índices de excelência para as áreas das ciências da saúde. Mas esse método não é, necessariamente, o mais viável quando se quer considerar outras dimensões, que incluem dignidade da pessoa humana, medo de passar fome, hábitos culturais, sustentabilidade. Se assim fosse, uma pessoa que tem peso e altura dentro dos padrões de normalidade à custa de calorias coletadas num lixão não ensejaria problema. Há, pois, dimensões da fome que os tais indicadores antropométricos não captam.

Pesquisa recente do Ministério da Saúde revelou que a desnutrição infantil -medida por peso e estatura- está virtualmente eliminada do país. É, sem dúvida, um resultado importante na luta contra a fome. Mas chamamos a atenção para aquelas crianças e famílias ainda invisíveis ao poder público e que até mesmo jamais fizeram parte de uma amostra de inquérito populacional porque nem sequer têm endereço fixo ou moradia. É, por exemplo, o caso das crianças indígenas acompanhadas pelo Ministério da Saúde nos distritos sanitários especiais indígenas, em 2007. Entre as 25.700 crianças monitoradas mensalmente, a prevalência máxima de baixo peso para a idade chegou a 30%, confirmando a vulnerabilidade desses povos. É o nosso Haiti.

Portanto, avaliar a fome requer a conjugação de diversos componentes e indicadores, como renda e gastos com alimentação nos domicílios, estudos de consumo alimentar individual, indicadores de percepção das famílias sobre sua (in)segurança alimentar, entre outros.

Na realidade, ainda falta muito para o país alcançar o direito humano à alimentação adequada de seus habitantes. Vivemos o paradoxo de sermos um grande produtor de alimentos, com recordes de supersafras agrícolas, sem, contudo, conseguirmos distribuir eqüitativamente os alimentos que colhemos. Numa economia de mercado, a renda é determinante do acesso aos alimentos.

Quem tem dinheiro consegue comprar alimento suficiente. Senão, é fome na certa, exceção para aqueles que produzem os seus próprios alimentos, situação cada vez mais rara nos tempos atuais.

Daí a função importantíssima de programas de transferência direta de renda na recomposição do poder de compra das famílias pobres. Segundo dados do Ipea (2007), 54 milhões de pessoas são consideradas pobres no Brasil -renda mensal domiciliar per capita de até R$ 207,50 (meio salário mínimo). Com tal renda, ninguém consegue adquirir alimentos suficientes para uma alimentação saudável e uma vida digna.

É papel da sociedade civil defender sempre a ampliação e o aperfeiçoamento das políticas públicas que reduzem a pobreza e promovem a inclusão social. A luta por um mundo livre da fome não aceita retrocessos. Estamos no caminho certo, mas precisamos avançar mais rápido para vivermos em um Brasil onde o direito humano à alimentação adequada seja uma realidade para todos.

Marília Mendonça Leão, enfermeira sanitarista, especialista em políticas públicas e mestre em nutrição, é presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e pelos Direitos Humanos e representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Publicado no jornal Folha de São Paulo, em 25.08.2008

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