segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Ver as árvores e enxergar o bosque

Ver as árvores e enxergar o bosque

Patrus Ananias

A consolidação da democracia é apresentada por muitos estudiosos do assunto como uma das principais conquistas do século 20. Embora o embrião de um governo democrático se localize nos meados do século XVIII, foi necessário um longo período histórico até que se alcançasse a compreensão e o consenso em torno da democracia de massa. O final do século passado nos trouxe essa conquista junto com outros desafios e demandas, dentre eles o de "democratizar a democracia", parafraseando o título de um livro organizado por Boaventura de Sousa Santos.

No início do milênio nos debruçamos então sobre esse legado histórico e nos deparamos com o surgimento de novas formas de participação popular em regimes democráticos, numa espécie de resposta ao dilema: a representação eleitoral sozinha, embora seja uma conquista histórica fundamental, demonstra-se incapaz de responder a todas as questões apresentadas pela diversidade.

Estamos, como bem identifica Sousa Santos, num período paradoxal e de transição paradigmática. Isso nos impõe a responsabilidade de refletir sobre os formatos, modelos e estruturas das formas de participação popular, ao mesmo tempo em que a promovemos e exercitamos. E devemos fazer isso sem perder de vista o propósito e potencial desses movimentos de fortalecer a democracia.

A emergência das conferências nacionais de cunho temático ou regional se enquadra nessa tarefa, presente no governo do presidente Lula, de promover um aprofundamento e uma radicalização - no sentido de ir à raiz do assunto - da democracia, com um saudável alargamento das possibilidades da democracia participativa. Só na instância do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, contabilizamos três na área de Segurança Alimentar e, na Assistência Social, outras duas, a caminho da terceira, a ser realizada no próximo semestre. Também tive oportunidade de participar de outras que têm interface conosco, como a das Mulheres, a de Cultura e a de Meio Ambiente. Ao todo, foram 44 Conferências realizadas desde 2003, algumas já em estágio mais avançado de organização, mas muitas em sua primeira edição. O crescimento do espaço dessas conferências dentro da esfera governamental é resultado do processo de fortalecimento e estímulo dos conselhos setoriais, estrutura prevista na Constituição de 1988 com formação paritária.

O debate não é novo, embora tenha adquirido novos contornos a partir da dimensão que tem ocupado na agenda pública, com sua valorização institucional, sobretudo no atual governo. Na década de 1970 e início dos 1980, já discutíamos nas instâncias partidárias e do movimento popular sobre o caráter que deviam ter os conselhos, se consultivos ou deliberativos. Penso que devemos defender os conselhos e seus respectivos espaços de discussão como importantes agentes de interlocução do Estado com a sociedade, com entidades representativas, setorial e/ou regionalmente, que devem ser ouvidos na formulação de políticas públicas. Mas penso também que o processo deve respeitar as especificidades, preservando, de um lado, as responsabilidades do Estado, e de outro a função da sociedade. Como norteador das ações, está o espaço comum que nos unifica em torno do debate, que é justamente a construção do bem comum nacional.

Todos os conselhos têm experiências esplêndidas e representativas de mobilização popular em torno de temas relevantes, como segurança alimentar e nutricional, acesso à água, assistência social, questão étnica e de gênero. Em que pese toda força mobilizadora, eles não podem ter caráter deliberativo e devem se constituir como um fórum que deve ser, como vem sendo, considerado pelo governo. Como exemplo temos o reajuste da merenda escolar e a implementação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar (Losan), promovidos pelo governo em consonância com demandas apresentadas ao final da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Recife, em 2004. A V Conferência da Assistência Social, realizada em 2005 em Brasília, produziu um plano decenal para implantação do Sistema Único de Assistência Social, adotado pelo governo.

Se cada um dos conselhos tiver um caráter deliberativo, pode gerar conflito entre eles. Além disso, dentro da perspectiva de fortalecimento do processo democrático, eles não podem derrogar os poderes constituídos; não podem se sobrepor à legitimidade dos representantes eleitos do Executivo e do Legislativo e nem, tampouco, do Judiciário. Os conselhos devem se firmar como instâncias de enriquecimento do processo e a idéia é aperfeiçoar, oxigenar, trazer vida nova aos poderes instituídos. É trazer o sopro da presença popular, do controle e da presença da sociedade. Por isso também não é "meramente consultivo", pois o governo pode incorporar suas decisões, como tem incorporado.

Os conselhos e as conferências são espaços legítimos de reivindicações, de lutas democráticas e sociais. Mas é necessário, e isso é função do Estado, considerar prioridades, disponibilidade de recursos, viabilidade de uma proposta em relação a outra, avaliar repercussões dentro de uma estratégia nacional. Por mais importantes que sejam os conselhos, todos têm uma visão setorial ou regional e "as árvores não deixam ver o bosque", diz um adágio alemão, revisitado por Ortega y Gasset.

Nosso desafio é superar a fragmentação, e continuar avançando ainda mais nas experiências, de modo que os conselhos passem a ter uma visão intersetorial. Acredito que temos aqui um possível caminho para aprofundarmos ainda mais a proposta de um governo popular e participativo. Creio que quanto mais os conselhos e as conferências trabalharem num contexto holístico, a partir de uma visão integrada e integral de desenvolvimento e dentro de uma proposta de projeto nacional, mais espaço podem alcançar nas instâncias de decisão, sem comprometer o papel civilizatório do Estado.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Artigo publicado pelo jornal Valor Econômico no dia 10/08/2007

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