domingo, 8 de julho de 2007

A renda básica da cidadania

A RENDA BÁSICA DE CIDADANIA
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Diretor da FASE

O Primeiro passo para debatermos o futuro dos processos distributivos, os sistemas de proteção e a promoção dos direitos como acesso ao bem-estar coletivo, nas condições da crise e reestruturação do capital, foi dado com a vitória parcial da luta do Senador Suplicy pela renda básica da cidadania e pelos efeitos do aumento da renda para as famílias que vivem abaixo da linha da pobreza no âmbito da unificação das políticas de distribuição.
Uma agenda comum oculta se revela num embrião positivo de debate sobre o acesso à renda, que se consolidará de forma afirmativa quando mais de 11 milhões de famílias e mais de 40 milhões de pessoas forem beneficiadas pela distribuição direta promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Social. A eficácia desse processo dependerá de sua conexão com os demais direitos e políticas sociais e da sua apropriação pelos processos de mobilização democrática e produtiva nos diferentes territórios, nos espaços de conflito para a superação da desigualdade sócio-espacial e das suas vinculações com as múltiplas formas de segregação étnica, cultural, de gênero e de geração.
O lançamento pela editora L PeM de um livro de bolso do Senador Eduardo Matarazzo Suplicy, “Renda Básica de Cidadania: a resposta dada pelo vento”, reafirma os argumentos políticos, éticos e econômicos para a adoção desse mecanismo, cuja forma deverá ser objeto de disputa e cuja consolidação dependerá da percepção coletiva da renda como direito.
As transformações no modo de produção da vida material nas sociedades contemporâneas ampliaram o peso da questão do acesso direto à renda como condição para o exercício da cidadania. A mercantilização da vida social, a monetarização, a urbanização, a divisão social do trabalho, os processos de automação, a crise das formas de proteção e seguridade social, as baixas taxas de crescimento, os processos de concentração de renda e propriedade, o recuo nas políticas de proteção social, a crise do vínculo salarial, a precarização das relações de trabalho, os processos de automação e o desemprego estrutural, a exclusão social ampliada e as formas de marginalização forçada permanente, a financeirização e os novos padrões de consumo e oferta de bens e serviços geraram uma reestruturação dos modos de reprodução social.
As modalidades de organização dos fluxos materiais e imateriais de geração da riqueza e a estrutura da propriedade, assim como a crise fiscal do Estado, combinam-se ao conjunto de fenômenos que afetam o uso e a constituição dos fundos públicos e dos sistemas e redes de proteção e inclusão social, que derivavam em grande parte do Estado social ampliado ou das políticas de welfare. Ao longo do processo histórico do capitalismo, a luta por direitos sociais relacionando trabalho assalariado e cidadania constituíam um vínculo central que se modifica na contemporaneidade, esse
processo é político no que se refere ao papel do Estado e do uso dos fundos públicos, assim como na questão da constituição dos sujeitos políticos que organizam a base da pirâmide social.
Os movimentos sociais que sopram no continente americano pela mobilização de indígenas ou pela mobilização de destituídos e emigrantes de todos os tipos assinalam o único caminho para as democracias e os povos mestiços assegurarem as bases da cidadania, pela garantia de direitos. Neste momento de crise de legitimidade da representação política em ano de disputa eleitoral, é preciso que a agenda comum dos direitos ganhe centralidade como única forma de redefinir os rumos da democracia sob a ótica da grande política, a do bem comum e a da autonomia dos sujeitos sociais, via construção da cidadania pelo acesso aos direitos humanos na sua integralidade, nos termos da Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo em que se comemora os 40 anos do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, fica evidente a chave emancipatória e a potencialidade integradora da cidadania expressa no reconhecimento de velhos e novos direitos. O tema do novo Primeiro de Maio nos EUA, na Bolívia ou no Brasil é da ampliação permanente dos direitos como única forma de articular a qualidade de vida dentro das nações e no âmbito global. Direitos civis e políticos se articulam com direitos econômicos e se traduzem na nova cultura necessária para uma agenda de desenvolvimento com base no reconhecimento dos direitos comuns da cidadania a participar dos frutos da riqueza gerada. Na base da produção do excedente nacional, na mais-valia extraída pela coerção da moeda está a multidão de trabalhadores destituídos que reclamam o justo direito de acesso e participação, sem o que a modernidade não passa de um novo nome para a decadência e a barbárie tão ao gosto das velhas oligarquias e das novas burguesias bancárias e rentistas.
Os que fazem vista grossa para a perversão do superávit fiscal na base, para a perversão do latifúndio, para a evasão de rendas, divisas e tributos se preocupam em denegrir esse pequeno instrumento emergente, fundamental para uma futura grande política. A construção da agenda comum das verdadeiras reformas sociais e democráticas para imprimir uma dinâmica moderna e republicana nas nossas instituições depende de que os direitos básicos da cidadania se articulem contra os limites minimalistas que se traduzem em quase programas assistenciais. A agenda deve buscar o sentido comum e anti-mercadoria do uso dos fundos públicos de modo a garantir os elementos redistributivos que fazem parte de todo grande processo de compromisso social com base em direitos.
A constituição de vínculos políticos, a solidariedade social, a dinâmica de reprodução social e distribuição de renda, ao lado do acesso aos direitos sociais e culturais, acompanham essa metamorfose, colocando no foco do conflito com a mercantilização e a privatização a disputa sobre os modos de criação de vínculos para a inserção social e de consolidação da cidadania integral. Uma face central das exigências de desmercadorização dos processos é a do uso anti-mercadoria dos fundos públicos, quer para promover novos sujeitos produtivos quer para garantir a qualidade de vida e o bem-estar social individual e coletivo.
O debate sobre a renda básica da cidadania, que oscila entre a noção de uma renda mínima de combate à pobreza e a renda necessária para participar dos resultados da produção social do excedente dentro dos modernos mecanismos de acumulação de riqueza, se coloca no coração da definição dos limites para o processo de apropriação da mais-valia social pelo capital, dos limites para
políticas redistributivas indiretas e para o gasto público via máquina estatal e das demais formas de segmentação e segregação no âmbito da sociedade civil via diferenças de status e propriedade. A renda básica da cidadania enquanto mecanismo de distribuição direta de recursos públicos para as populações de baixa renda constitui um mecanismo de acesso e garantia de direitos que representa o piso mínimo de uma revolução silenciosa para recolocar o acento anti-mercadoria e de sentido comum para a sociedade brasileira. A batalha do Senador Suplicy e a pressão dos novos sujeitos sociais que expressam o enorme precariado brasileiro dos sem-teto, terra, emprego etc., relacionam a dinâmica inorgânica do conflito social com a necessidade de integrar a dinâmica da proteção, solidariedade e integração social. Face necessária e complementar das políticas territorializadas voltadas para favelados, quilombolas e indígenas. Face necessária e complementar também da luta das mulheres pelos direitos produtivos e reprodutivos. Indispensável ainda para os trabalhadores da informalidade e
autônomos e para os jovens marginalizados no quadro de violência e desvinculação social.
A emergência dos novos direitos de acesso à renda como condição de inserção produtiva é evidente na sua interface com processos de reforma e assentamento agrário, de empreendedorismo solidário, de erradicação de lixões, de erradicação do trabalho infantil e da exploração infantil. Todas aspolíticas públicas sociais permanentes e todas as formas de acesso aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais são ativadas nesse processo. Visto pelo crivo minimalista, esse processo oscila entre o assistencialismo e desperdício, visto sobre a ótica da cidadania integral, esse processo entra na chave constituitiva da dinâmica democrática de superação da desigualdade estrutural, ao lado do acesso à propriedade e aos meios de produção, ao lado do acesso aos equipamentos coletivos e ao meio-ambiente com base na sócio-sustentabilidade. Ao lado do ensino básico, do direito à comunicação via universalização do acesso às tecnologias de informação e comunicação, do direito à cultura, o novo direito à renda abre mais uma porta da agenda oculta democrática e republicana. Somente as forças reacionárias não vêem a importância das formas atuais de programas como o bolsa família, elemento de direito expresso na Lei 10.835/2004 que instituí a renda básica de cidadania.

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