Rudá Ricci*
Amigos e companheiros,
Escrevo em português porque o que nos une não é a língua pátria, mas o forte sentimento humanista que não apenas crê, mas constrói duramente a possibilidade de diálogo entre as diversas aventuras humanas. Somos freireanos de diversas regiões e países, o que não nos faz apenas membros de uma comunidade, mas membros de um projeto humanista, portanto, universal.
Falar a partir de Paulo Freire é sempre emocionante, principalmente para aqueles que o conheceram. Conheci Paulo quando ingressava na faculdade, então com 17 anos de idade. Por muito tempo, e ele ouvia meio a contragosto, que havia aprendido a ler com ele. Nos seminários que ocorriam nas manhãs dos sábados, numa sala lotada de admiradores, Paulo lia uma página de um livro por mais de três horas. Nunca havia imaginado que um livro pudesse ser lido em quatro ou cinco meses e que contivesse tantas outras histórias e conhecimentos nas entrelinhas do que estava escrito. Com Paulo, as entrelinhas sempre continham muitos segredos que poucos percebiam e que ele desvendava com calma, quase que saboreando.
Gostaria, entretanto, de provocar uma breve reflexão sobre nosso papel, em pleno século XXI. Imagino que todos freireanos e educadores populares se perguntam qual nossa função neste século que começa muito conturbado. Há tempos se discute o aggiornamento da educação popular no Brasil. Nascida nos anos 60, sob a genialidade e compromisso de Paulo Freire e seus seguidores, a educação popular se embrenhou nas organizações populares e por muito tempo foi símbolo de resistência às várias facetas do autoritarismo.
Autoritarismos (no plural) tanto de Estado, como de comportamentos individuais e até mesmo das tentações que sempre bateram à porta das próprias organizações populares. Por muito tempo, o que denominamos de educação popular foi uma escuta da voz de quem se sentia vencido pelo poder oficial, excluído da possibilidade de vôos sociais, econômicos e políticos. Incapaz de se sentir um cidadão por inteiro.
Das cartilhas rodadas em mimeógrafos ou gráficas improvisadas, dos cursos realizados em espaços dos mais espartanos, metodologias e instrumentos de educação popular invadiram sindicatos, partidos políticos, grandes organizações não-governamentais, políticas governamentais. Cresceu, apareceu e foi ser gauche na vida.
Mas, aí, topamos com a realidade sempre complexa e contraditória. Nem sempre, a energia moral da educação popular acompanhou as diversas e múltiplas tentativas que foram surgindo ao longo dos anos 80 e 90. A metodologia se esvaziou, de tempos em tempos, de conteúdo libertário e emancipatório. A autonomia, palavra carregada de sentido para todos freireanos, foi se transfigurando em diversas modalidades. Várias metodologias que antes se voltavam para o tempo e dilemas da base social em busca da cidadania ativa, foram se fechando na formação dos quadros das
próprias instituições mediadoras, que representavam um segmento social.
Daí o aggionarmento. Não como uma etapa absolutamente nova da educação popular, mas como um looping, retornando às origens e confrontando os seus princípios às conquistas sociais e à nova dinâmica das organizações populares e dos segmentos sociais que ainda buscam a cidadania ativa, protagonista. Cidadania ativa que vai sendo compreendida, a cada dia, como controle social sobre o Estado e as políticas públicas do país.
O que se traduz no abandono da negação a institucionalidade pública. Antes, procura contribuir para criar uma nova lógica de Estado, mais porosa à demanda social, menos burocratizada, menos clandestina aos olhos do cidadão.
O Estado passou a ser tema central das lutas sociais. Não como máquina administrativa da classe dominante, mas como aparelho público, a serviço do interesse social, do combate à desigualdade. Passa a ser compreendido como espaço de disputa, de dissenso e de formulação coletiva de acordos
negociados.
Então, ao retornarmos aos princípios da educação popular, criamos um diálogo complexo e instigante com os desafios do momento. Sejamos mais explícitos. Em 1982, Carlos Rodrigues Brandão, outro freireano, publicou o livro A Questão Política da Educação Popular. O prefácio do livro foi uma inovação instigante porque transcrevia uma entrevista com Ciço, um agricultor familiar do interior do país. Era a voz dele impregnando as páginas de um livro a ser lido por intelectuais e educadores populares. Ciço, logo de
início dizia:
... Agora, o senhor chega e pergunta: “Ciço, o que que é educação?” Tá certo. Tá bom. O que que eu penso, eu digo. Então veja, o senhor fala: “Educação”; daí eu falo: “educação”. A palavra é a mesma, não é? A pronúncia, eu quero dizer. É uma só: “Educação”. Mas então eu pergunto pro senhor: É a mesma coisa? É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?” Aí eu digo: “Não”. Eu digo pro senhor desse jeito: “Não , não é”. Eu penso que não. Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê?
Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui. Então, quando o senhor vem e fala a pronúncia “educação”, na sua educação tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme eu sei pronunciar também, ela vem misturada no pensamento com isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? Dos evangelhos: “Semente que caiu na terra boa e deu fruto bom”. (...)Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto da roça, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi pra mim.
As duas educações, que parecem ser a mesma, são desveladas pela leitura crua e afiada de Ciço. A educação de um o fez e a mesma educação formal, para o outro, o jogou no ostracismo. Não qualquer ostracismo. A educação que Brandão recebeu, no olhar de Ciço, o tinha projetado como alguém importante para a própria educação brasileira. Mas a educação que Ciço recebeu não o fez um personagem importante para a educação nacional. Pelo contrário, foi a educação não formal e o olhar atento de Brandão que o trouxe para o mundo dos que refletem e pensam a educação do nosso país, a partir do seu livro.
A fala de Ciço revela um ressentimento fino, calculado, trabalhado em cada palavra. Uma crítica é acompanhada de uma explicação didática, justificando e embasando o ressentimento.
Este foi o mote dos anos 80 para os educadores sociais. A necessidade de construir uma educação popular à margem da oficial, evidentemente excludente.
Mas na mesma entrevista, Ciço indicava um caminho que somente agora parece retomado. Voltemos ao seu discurso crítico:
Inda ontem o senhor me perguntava da Folia de Santos Reis que a gente vimos em Caldas: “Ciço, como é que um menino aprende o cantorio? As respostas?” Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensinar? Menino tão ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo. Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), tá aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), tá aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido. Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas se ele não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma lição escondida. Não é uma escola; não tem um professor assim na frente, com o nome “professor”. Não tem... Você vai juntando, vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus é servido.Quem que vai chamar isso aí de uma educação? Um tipo dum ensino esparramado, coisa de sertão. Mas tem, não tem? Não sei. Podia ser que tivesse mais, por exemplo, na hora que um mais velho chama um menino, um filho. Chama num canto, fala, dá um conselho, fala sério um assunto: assim, assim. Aí pode. Ele é um pai, um padrinho, um mais velho. Na hora ele representa como de um professor, até como um padre. Tem um saber que é falado ali naquela hora. Não tem um estudo, mas tem um saber. O menino baixa a cabeça, daí ele escuta; aprendeu, às vezes não esquece mais nunca.
Agora, o senhor chega e diz: “Ciço, e uma educação dum outro jeito? Um saber pro povo do mundo como ele é?” Esse eu queria ver explicado. O senhor fala: “Eu tô falando duma educação pro povo mesmo, um tipo duma educação dele, assim, assim.”. Essa eu queria saber como é. Tem? Aí o senhor diz que isso bem podia ser feito; tudo junto: gente daqui, de lá, professor, peão, tudo. Daí eu pergunto: “Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra quê? Pra quem? (...) se um tipo desse duma educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, com adultos, os velhos, até mulheres, conforme foi dito, assim num acordo, num outro tipo de união, com o povo todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que é nossa também, que então juntasse idéia de todos, professor, nós, num assunto assim, assim, então o senhor havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa do que a gente pensa.
Existiria, enfim, uma outra educação, voltada para a inclusão e para a valorização da cultura. Mais ainda: Ciço indica uma metodologia emancipatória e não paralela à oficial. Uma educação fundada na prosa, na troca de saberes.
Voltar à fala de Ciço nos obriga a pensar os desafios da educação popular nos dias de hoje. Desafios postos por situações muito mais ousadas que vivenciamos na nossa América Latina. São inovações importantes, ali e acolá.
Lei da Transparência no Peru, Lei Orgânica dos Municípios na Venezuela, redes de controle social sobre políticas públicas na América Central, Assembléias Populares na Argentina, 30 mil conselhos de gestão pública (com participação direta de representantes da sociedade civil e organizações populares) no Brasil, práticas de orçamento participativo e escolas de formação para a cidadania ativa no Chile e em diversos outros países do nosso Continente.
São novos e subversivos instrumentos de Estado, muitas vezes ambivalentes, contraditórios. Mas como nos ensinou Paulo Freire, toda contradição encerra o novo, a possibilidade. Então, pela força e história das lutas populares, uma nova institucionalidade pública vai se forjando na América Latina, ainda que não consigamos percebe-la com nitidez. E é exatamente aí que se encontra nosso maior desafio. Grande parte da população latino-americana desconfia da política, carrega grande ressentimento que muitas vezes inibe sua participação efetiva nas mudanças que citei acima. Como se vivessem um movimento pendular na sua vocação libertária, autônoma.
Portanto, as janelas que se abrem permanecem, por vezes, distantes da grande maioria dos cidadãos de nossos países.
Há um evidente canal de comunicação entre o Estado autocrático e altamente burocratizado e a desconfiança e ressentimento político da maioria da população. Um se alimenta do outro e cria um círculo vicioso que produz crises de representação permanentes, cada vez mais banalizadas.
Nossa tarefa é alimentarmos o debate público sobre as possibilidades abertas. É criarmos instrumentos inovadores de problematização e radicalização de nossas democracias. É criarmos situações de reflexão a respeito da construção de saberes políticos, que garantam a direção política
dessas possibilidades. Escolas da Cidadania, redes latino-americanas de educação para a democracia participativa, universidades populares, troca de experiências em gestão pública participativa, sistemas de monitoramento de políticas públicas, controle social sobre territórios, parlamentos juvenis, orçamentos participativos criança. São tantas experiências e possibilidades abertas.
Assim, comemoramos permanentemente Paulo Freire. Mais ainda, comemoramos nossa crença. E fazemos da sabedoria popular o grande desafio da aventura humana.
Um forte e caloroso abraço desde Brasil.
Rudá Ricci
Instituto Cultiva
Fórum Brasil do Orçamento
Escolas da Cidadania
Publicado em
02/07/2007
Fonte: http://www.cultiva.org.br/
Amigos e companheiros,
Escrevo em português porque o que nos une não é a língua pátria, mas o forte sentimento humanista que não apenas crê, mas constrói duramente a possibilidade de diálogo entre as diversas aventuras humanas. Somos freireanos de diversas regiões e países, o que não nos faz apenas membros de uma comunidade, mas membros de um projeto humanista, portanto, universal.
Falar a partir de Paulo Freire é sempre emocionante, principalmente para aqueles que o conheceram. Conheci Paulo quando ingressava na faculdade, então com 17 anos de idade. Por muito tempo, e ele ouvia meio a contragosto, que havia aprendido a ler com ele. Nos seminários que ocorriam nas manhãs dos sábados, numa sala lotada de admiradores, Paulo lia uma página de um livro por mais de três horas. Nunca havia imaginado que um livro pudesse ser lido em quatro ou cinco meses e que contivesse tantas outras histórias e conhecimentos nas entrelinhas do que estava escrito. Com Paulo, as entrelinhas sempre continham muitos segredos que poucos percebiam e que ele desvendava com calma, quase que saboreando.
Gostaria, entretanto, de provocar uma breve reflexão sobre nosso papel, em pleno século XXI. Imagino que todos freireanos e educadores populares se perguntam qual nossa função neste século que começa muito conturbado. Há tempos se discute o aggiornamento da educação popular no Brasil. Nascida nos anos 60, sob a genialidade e compromisso de Paulo Freire e seus seguidores, a educação popular se embrenhou nas organizações populares e por muito tempo foi símbolo de resistência às várias facetas do autoritarismo.
Autoritarismos (no plural) tanto de Estado, como de comportamentos individuais e até mesmo das tentações que sempre bateram à porta das próprias organizações populares. Por muito tempo, o que denominamos de educação popular foi uma escuta da voz de quem se sentia vencido pelo poder oficial, excluído da possibilidade de vôos sociais, econômicos e políticos. Incapaz de se sentir um cidadão por inteiro.
Das cartilhas rodadas em mimeógrafos ou gráficas improvisadas, dos cursos realizados em espaços dos mais espartanos, metodologias e instrumentos de educação popular invadiram sindicatos, partidos políticos, grandes organizações não-governamentais, políticas governamentais. Cresceu, apareceu e foi ser gauche na vida.
Mas, aí, topamos com a realidade sempre complexa e contraditória. Nem sempre, a energia moral da educação popular acompanhou as diversas e múltiplas tentativas que foram surgindo ao longo dos anos 80 e 90. A metodologia se esvaziou, de tempos em tempos, de conteúdo libertário e emancipatório. A autonomia, palavra carregada de sentido para todos freireanos, foi se transfigurando em diversas modalidades. Várias metodologias que antes se voltavam para o tempo e dilemas da base social em busca da cidadania ativa, foram se fechando na formação dos quadros das
próprias instituições mediadoras, que representavam um segmento social.
Daí o aggionarmento. Não como uma etapa absolutamente nova da educação popular, mas como um looping, retornando às origens e confrontando os seus princípios às conquistas sociais e à nova dinâmica das organizações populares e dos segmentos sociais que ainda buscam a cidadania ativa, protagonista. Cidadania ativa que vai sendo compreendida, a cada dia, como controle social sobre o Estado e as políticas públicas do país.
O que se traduz no abandono da negação a institucionalidade pública. Antes, procura contribuir para criar uma nova lógica de Estado, mais porosa à demanda social, menos burocratizada, menos clandestina aos olhos do cidadão.
O Estado passou a ser tema central das lutas sociais. Não como máquina administrativa da classe dominante, mas como aparelho público, a serviço do interesse social, do combate à desigualdade. Passa a ser compreendido como espaço de disputa, de dissenso e de formulação coletiva de acordos
negociados.
Então, ao retornarmos aos princípios da educação popular, criamos um diálogo complexo e instigante com os desafios do momento. Sejamos mais explícitos. Em 1982, Carlos Rodrigues Brandão, outro freireano, publicou o livro A Questão Política da Educação Popular. O prefácio do livro foi uma inovação instigante porque transcrevia uma entrevista com Ciço, um agricultor familiar do interior do país. Era a voz dele impregnando as páginas de um livro a ser lido por intelectuais e educadores populares. Ciço, logo de
início dizia:
... Agora, o senhor chega e pergunta: “Ciço, o que que é educação?” Tá certo. Tá bom. O que que eu penso, eu digo. Então veja, o senhor fala: “Educação”; daí eu falo: “educação”. A palavra é a mesma, não é? A pronúncia, eu quero dizer. É uma só: “Educação”. Mas então eu pergunto pro senhor: É a mesma coisa? É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra?” Aí eu digo: “Não”. Eu digo pro senhor desse jeito: “Não , não é”. Eu penso que não. Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê?
Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui. Então, quando o senhor vem e fala a pronúncia “educação”, na sua educação tem disso. Quando o senhor fala a palavra conforme eu sei pronunciar também, ela vem misturada no pensamento com isso tudo; recursos que no seu mundo tem. Uma coisa assim como aquilo que a gente conversava outro dia, lembra? Dos evangelhos: “Semente que caiu na terra boa e deu fruto bom”. (...)Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto da roça, a professorinha dali mesmo, os recursos tudo como é o resto da regra de pobre. Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo “educação” e penso “enxada”, o que foi pra mim.
As duas educações, que parecem ser a mesma, são desveladas pela leitura crua e afiada de Ciço. A educação de um o fez e a mesma educação formal, para o outro, o jogou no ostracismo. Não qualquer ostracismo. A educação que Brandão recebeu, no olhar de Ciço, o tinha projetado como alguém importante para a própria educação brasileira. Mas a educação que Ciço recebeu não o fez um personagem importante para a educação nacional. Pelo contrário, foi a educação não formal e o olhar atento de Brandão que o trouxe para o mundo dos que refletem e pensam a educação do nosso país, a partir do seu livro.
A fala de Ciço revela um ressentimento fino, calculado, trabalhado em cada palavra. Uma crítica é acompanhada de uma explicação didática, justificando e embasando o ressentimento.
Este foi o mote dos anos 80 para os educadores sociais. A necessidade de construir uma educação popular à margem da oficial, evidentemente excludente.
Mas na mesma entrevista, Ciço indicava um caminho que somente agora parece retomado. Voltemos ao seu discurso crítico:
Inda ontem o senhor me perguntava da Folia de Santos Reis que a gente vimos em Caldas: “Ciço, como é que um menino aprende o cantorio? As respostas?” Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensinar? Menino tão ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo. Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), tá aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), tá aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido. Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas se ele não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma lição escondida. Não é uma escola; não tem um professor assim na frente, com o nome “professor”. Não tem... Você vai juntando, vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus é servido.Quem que vai chamar isso aí de uma educação? Um tipo dum ensino esparramado, coisa de sertão. Mas tem, não tem? Não sei. Podia ser que tivesse mais, por exemplo, na hora que um mais velho chama um menino, um filho. Chama num canto, fala, dá um conselho, fala sério um assunto: assim, assim. Aí pode. Ele é um pai, um padrinho, um mais velho. Na hora ele representa como de um professor, até como um padre. Tem um saber que é falado ali naquela hora. Não tem um estudo, mas tem um saber. O menino baixa a cabeça, daí ele escuta; aprendeu, às vezes não esquece mais nunca.
Agora, o senhor chega e diz: “Ciço, e uma educação dum outro jeito? Um saber pro povo do mundo como ele é?” Esse eu queria ver explicado. O senhor fala: “Eu tô falando duma educação pro povo mesmo, um tipo duma educação dele, assim, assim.”. Essa eu queria saber como é. Tem? Aí o senhor diz que isso bem podia ser feito; tudo junto: gente daqui, de lá, professor, peão, tudo. Daí eu pergunto: “Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra quê? Pra quem? (...) se um tipo desse duma educação assim pudesse ter aqui, como a gente estamos conversando, com adultos, os velhos, até mulheres, conforme foi dito, assim num acordo, num outro tipo de união, com o povo todo daí desses cantos sentindo deles, coisa deles, como uma coisa que é nossa também, que então juntasse idéia de todos, professor, nós, num assunto assim, assim, então o senhor havia de ver que o povo daqui tem mais de muita coisa do que a gente pensa.
Existiria, enfim, uma outra educação, voltada para a inclusão e para a valorização da cultura. Mais ainda: Ciço indica uma metodologia emancipatória e não paralela à oficial. Uma educação fundada na prosa, na troca de saberes.
Voltar à fala de Ciço nos obriga a pensar os desafios da educação popular nos dias de hoje. Desafios postos por situações muito mais ousadas que vivenciamos na nossa América Latina. São inovações importantes, ali e acolá.
Lei da Transparência no Peru, Lei Orgânica dos Municípios na Venezuela, redes de controle social sobre políticas públicas na América Central, Assembléias Populares na Argentina, 30 mil conselhos de gestão pública (com participação direta de representantes da sociedade civil e organizações populares) no Brasil, práticas de orçamento participativo e escolas de formação para a cidadania ativa no Chile e em diversos outros países do nosso Continente.
São novos e subversivos instrumentos de Estado, muitas vezes ambivalentes, contraditórios. Mas como nos ensinou Paulo Freire, toda contradição encerra o novo, a possibilidade. Então, pela força e história das lutas populares, uma nova institucionalidade pública vai se forjando na América Latina, ainda que não consigamos percebe-la com nitidez. E é exatamente aí que se encontra nosso maior desafio. Grande parte da população latino-americana desconfia da política, carrega grande ressentimento que muitas vezes inibe sua participação efetiva nas mudanças que citei acima. Como se vivessem um movimento pendular na sua vocação libertária, autônoma.
Portanto, as janelas que se abrem permanecem, por vezes, distantes da grande maioria dos cidadãos de nossos países.
Há um evidente canal de comunicação entre o Estado autocrático e altamente burocratizado e a desconfiança e ressentimento político da maioria da população. Um se alimenta do outro e cria um círculo vicioso que produz crises de representação permanentes, cada vez mais banalizadas.
Nossa tarefa é alimentarmos o debate público sobre as possibilidades abertas. É criarmos instrumentos inovadores de problematização e radicalização de nossas democracias. É criarmos situações de reflexão a respeito da construção de saberes políticos, que garantam a direção política
dessas possibilidades. Escolas da Cidadania, redes latino-americanas de educação para a democracia participativa, universidades populares, troca de experiências em gestão pública participativa, sistemas de monitoramento de políticas públicas, controle social sobre territórios, parlamentos juvenis, orçamentos participativos criança. São tantas experiências e possibilidades abertas.
Assim, comemoramos permanentemente Paulo Freire. Mais ainda, comemoramos nossa crença. E fazemos da sabedoria popular o grande desafio da aventura humana.
Um forte e caloroso abraço desde Brasil.
Rudá Ricci
Instituto Cultiva
Fórum Brasil do Orçamento
Escolas da Cidadania
Publicado em
02/07/2007
Fonte: http://www.cultiva.org.br/
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