quinta-feira, 12 de julho de 2007

A escola como lugar da formação

Novas Disposições dos Professores
A escola como lugar da formação
Antônio Nóvoa*

• Vivemos em sociedades do espectáculo. Em sociedades marcadas pelos media, pela dramatização das notícias, por uma encenação permanente (quotidiana) dos acontecimentos. Tudo é drama. O espectáculo nunca pára. Transformou-se mesmo num modo-de-existência.

• Vivemos em sociedades da competição. Em sociedades definidas pela concorrência, pela disputa entre pessoas, entre empresas, entre instituições. A competição deixou de ser um “resultado” para passar a ser um “processo” que determina as nossas vidas.

• Vivemos em sociedades do consumo. Em sociedades organizadas para a compra de bens, úteis e inúteis. O consumismo é uma estranha forma de vida, mas tão familiar que é inimaginável existir sem ele. Faz lembrar a célebre frase de Fernando Pessoa para a Coca-Cola: Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.

• Vivemos em sociedades do conhecimento. Em sociedades que se definem por uma procura incessante de novos conhecimentos e tecnologias, por uma quase angustiante necessidade de formação e re-formação, pela sensação de que estamos sempre desatualizados.

Eis quatro tópicos que estão hoje no debate contemporâneo sobre a sociedade e que têm consequências fortíssimas no espaço educativo, em particular no que diz respeito à reconfiguração do trabalho dos professores.

• Sociedade do espetáculo

Há hoje uma dimensão espectacular, uma exposição pública das diversas instituições e actividades profissionais. Fala-se em transparência, fala-se em avaliação. A escola é sistematicamente exposta nos media, no debate público. Veja-se o enorme impacto público dos rankings internacionais de literacia ou de desempenho escolar, que tendem a constituir-se em elemento central de definição (ou, pelo menos, de legitimação) das políticas educativas. O modo como estes rankings são discutidos é de uma enorme pobreza. Mas serve para alimentar o espectáculo permanente da crise da escola e, regra geral, para culpar os professores.

• Sociedade da competição

A sociedade espectacular é, também, uma sociedade competitiva. A publicação anual dos resultados obtidos pelos alunos, agrupados por escola, procura estimular uma competição no plano nacional. As listas são justificadas como “indicador de qualidade” e até como método de avaliação. A importância que lhes tem sido concedida contribui, no entanto, para desvalorizar outros sistemas, bem mais produtivos, de observação, regulação e transformação das escolas.

• Sociedade do consumo

Um dos principais objectivos das listas anteriores, diz-se, é permitir que as famílias escolham as melhores escolas para os seus filhos.
Implicitamente, há uma ideologia de mercado que tende a instaurar uma relação consumista entre a escola e os seus “clientes” (leia-se os alunos e as famílias). A educação deixaria de ser um “bem público” passando a ser redefinida como mais um “bem de consumo”.

• Sociedade do conhecimento

Finalmente, importa referir a retórica principal dos tempos que correm, a chamada sociedade do conhecimento. Fala-se numa “aprendizagem ao longo da vida” e responsabiliza-se cada cidadão pela sua reciclagem, qualificação e atualização. Por vezes, instaura-se mesmo uma relação “culpabilizante” de cada um face ao seu próprio percurso de formação. Transformam-se, assim, problemas sociais em problemas individuais, buscando “soluções biográficas para contradições sistémicas”, como escreve Ulrich Beck.

É muito interessante verificar o modo como estas quatro tendências estão interligadas, reconfigurando os debates e as práticas no campo educativo.
Tentarei, de seguida, retirar algumas consequências para o trabalho docente, referindo a necessidade de novas disposições dos professores – relacionais, organizacionais, reflexivas e deliberativas. Argumentarei que estas disposições exigem práticas de formação de professores inevitavelmente localizadas na escola. Não se trata, claro está, de advogar uma qualquer forma de “practicismo”, mas antes de sublinhar a importância da escola como lugar da formação e o papel dos professores no seu próprio processo de desenvolvimento profissional.

A utilização do conceito de disposição – que tenho vindo a trabalhar, mas que se encontra ainda numa fase incipiente de elaboração – levanta algumas dificuldades. Por agora, limito-me a situar, de forma excessivamente simplificada, as razões por que a ele recorro.

Durante muito tempo, procuraram-se os atributos ou as características que definiam o “bom professor”. Esta abordagem conduziu, já na segunda metade do século XX, à consolidação de uma trilogia que teve grande sucesso: saber (conhecimentos), saber-fazer (capacidades), saber-ser (atitudes). O Relatório Faure de 1972 (Aprender a ser) foi muito importante na sua difusão.

Nos anos oitenta e noventa, sobretudo nesta última década, foi-se impondo um outro conceito, competências, que passou a dominar a cena educativa.
Elaborado teoricamente por autores de referência, tem tido um papel importante nas reformas curriculares, adaptando-se bem aos novos discursos-práticas da “empregabilidade” e da “formação ao longo da vida”.
Todavia, apesar das inúmeras justificações e contra-justificações, não conseguiu libertar-se das suas origens comportamentalistas e de leituras de cariz técnico e instrumental.

Ao sugerir um novo conceito, disposição, pretendo romper com o círculo vicioso de um debate sobre as competências que me parece saturado. Adopto um conceito mais “liquído” e menos “sólido”, construído a partir dos trabalhos sobre a modernidade líquida (Zygmunt Bauman), que pretende olhar preferencialmente para a ligação entre as dimensões pessoais e profissionais na produção identitária dos professores. Não se nega a necessidade de compreender o “repertório de competências” a mobilizar no trabalho docente, mas coloca-se a tónica numa (pre)disposição que não é natural mas
construída, na definição pública de uma posição com forte sentido cultural, numa profissionalidade que não pode deixar de se construir no interior de uma pessoalidade do professor.

DISPOSIÇÕES RELACIONAIS
Respondendo à sociedade do espetáculo

O professor é, por natureza, um comunicador. Mas este trabalho de comunicação tem estado situado, essencialmente, no interior da sala de aula. É verdade que, num passado longínquo, os professores tinham uma voz pública e eram elementos importantes das elites locais. Mas perderam este papel e, simultaneamente, perderam visibilidade pública. Nos media fala-se muito das escolas e dos professores. Por boas e por más razões. Mas há uma ausência dos professores, uma espécie de silêncio de uma profissão que se voltou para dentro, que se fechou nos muros da escola e que perdeu visibilidade no espaço público.

Hoje, impõe-se uma abertura do professor para o exterior, uma concepção da escola como um espaço aberto, em ligação com outras instituições culturais e científicas. O “novo” espaço público da educação chama os professores a uma intervenção política, a uma participação nos debates sociais e culturais, a um trabalho continuado junto das comunidades locais.

É preciso reconhecer que a situação concreta das escolas coloca muitos professores à beira de um ataque de nervos. Eles sentem-se incapazes de lidar com uma situação para a qual não se prepararam. A literatura especializada está repleta de estudos sobre o stress dos professores, o mal-estar docente, o burnout (a demissão ou o abandono da profissão).

O problema é particularmente grave nos jovens professores, que são atirados para as escolas sem qualquer apoio, sem qualquer suporte das instituições de formação inicial ou dos seus colegas. Caem de pára-quedas na realidade escolar e travam uma verdadeira “batalha de sobrevivência”. Importa alterar esta situação e enquadrar devidamente a fase inicial de docência, encarando-a como um momento propedêutico e probatório,

Programas de formação de professores centrados na escola deveriam ter como ponto de referência este período inicial, este momento de transição de “aluno-mestre” para “professor principiante”. Sublinho, por isso, a importância de uma FORMAÇÃO-ACOMPANHAMENTO nos primeiros anos de exercício profissional.

DISPOSIÇÕES ORGANIZACIONAIS
Respondendo à sociedade da competição

É evidente que os professores sempre foram organizadores de situações de ensino e aprendizagem. Mas, hoje, estas disposições situam-se também no plano da escola como um todo, com o seu próprio projeto educativo. Já não basta uma acção docente no interior da sala de aula. Há muitos problemas que só podem ser resolvidos ao nível da escola, graças a um trabalho colectivo de análise, de negociação. Parece-me absolutamente essencial uma reflexão sobre os modos de organização do trabalho escolar.

Temos que romper com uma estrutura curricular excessivamente centrada no espaço da sala de aula e pautada pelo ritmo de um tempo lectivo pré-definido. Temos de dar corpo a projectos educativos das escolas que favoreçam a emergência de uma identidade própria de cada escola.

Recuperar a ideia de “contrato educativo” parece-me prometedor. Ela permite envolver os pais e os meios locais, sem cair num desvio comunitarista que é uma das tendências mais perigosas de certas correntes pedagógicas (tenho dito, citando Philippe Meirieu, que há um “excesso de comunidade” e um “défice de sociedade” nas nossas escolas).

É inútil os professores tentarem enfrentar sozinhos, isolados, problemas que só têm solução num plano colectivo. Não se trata, claro está, de impor uma colaboração-à-força. Trata-se, sim, de inscrever a ideia de colegialidade no centro da definição identitária da profissão docente. Por isso, parece-me importante valorizar uma FORMAÇÃO-EM-SITUAÇÃO (in situ) centrada na própria escola e no seu projecto educativo.

DISPOSIÇÕES REFLEXIVAS
Respondendo à sociedade do consumo

O primado do consumo é muito forte nas políticas educativas, através das “ideologias da escolha”, mas também no campo da formação de professores, onde se desenvolveu nos últimos anos um verdadeiro “mercado”. Há hoje uma profusão de cursos, de seminários e de acções que alimentam (e se alimentam de) um sentimento de “desactualização” dos professores. Os pedagogos com a sua eterna necessidade de inovar dão origem, muitas vezes, a modismos passageiros, que colocam os professores na defensiva, cépticos. A moda é a pior maneira de encarar os debates educativos. A moda dispensa-nos de pensar.

É evidente que a Universidade tem um papel importante a desempenhar na formação de professores. Por razões de prestígio, de sustentação científica, de produção cultural. Mas a bagagem essencial de um professor adquire-se na escola, através da experiência e da reflexão sobre a experiência. Esta reflexão não surge do nada, por uma espécie de geração espontânea. Tem regras e métodos próprios.

A reflexão conjunta em “comunidades de prática”, o diálogo metódico entre os professores, a professional conversation (isto é, a discussão entre os pares, a análise colectiva das práticas), são referências centrais dos modelos actuais de formação de professores. Há uma forte dimensão analítica neste processo. Mas há também uma componente narrativa, pois é a partir das histórias (histórias num sentido de “situações narradas e teorizadas”) que se pode instituir uma FORMAÇÃO-MÚTUA (inter-pares) baseada na cooperação e no diálogo profissional.

DISPOSIÇÕES DELIBERATIVAS
Respondendo à sociedade do conhecimento

Chegamos ao último ponto, sem dúvida um dos mais importantes, pois toca diretamente no próprio objeto do trabalho docente: o conhecimento. Ainda que a missão do professor só termine quando consegue que este “objeto” se inscreva, seja apropriado, por um determinado “sujeito”.

Registem-se dois aspectos da contemporaneidade que têm repercussões significativas no acto de ensinar. Por um lado, os efeitos de fragmentação do conhecimento e, paradoxalmente, de balcanização da cultura provocados pelas novas tecnologias, que acentuam o papel do professor como construtor de sentidos e de pontes. Por outro lado, as descobertas científicas, por exemplo na área das neurociências, que se referem à aprendizagem como um fenómeno complexo e imprevisível (nem sempre se aprende do mais simples para o mais complexo, do mais concreto para o mais abstracto), realçando assim a importância de uma pedagogia-da-situação (Gisèle Barret).

Eis-nos no âmago do trabalho do professor. Nos últimos quinze anos, vulgarizou-se o conceito de transposição didáctica para explicar a acção docente (Yves Chevallard). Mais recentemente, Philippe Perrenoud tem falado de transposição pragmática para sublinhar a importância da mobilização prática dos saberes em situações inesperadas e imprevisíveis. Eu próprio, sem recusar os conceitos anteriores, tenho preferido falar de transposição deliberativa.

Com este conceito quero chamar a atenção para duas ideias:

– o trabalho pedagógico não está apenas impregnado de “saberes” e de uma “ decisão-em-situação”, mas implica uma deliberação, isto é, uma resposta do professor a partir de fronteiras éticas e de um esforço para enfrentar dilemas pessoais, sociais e culturais cada vez mais complexos

– a consciência não existe separada das emoções e dos sentimentos (António Damásio) e o acto de ensinar envolve sempre a integralidade da pessoa, implica a totalidade do ser professor e do ser aluno.

Por isso, insisto na importância de uma FORMAÇÃO-ANÁLISE que prepare os professores para uma “transposição deliberativa” dos saberes. Quero referir-me a uma reflexão sistemática sobre as práticas, a uma análise “clínica” de casos e de situações. Há uma parte de cientista no trabalho do professor: na aquisição do conhecimento, no estudo aturado, no rigor da planificação e da avaliação. Mas há também uma parte de artista, no modo como se reage a situações imprevistas, como se produz o jogo pedagógico.

Formação-Acompanhamento
Formação-em-Situação
Formação-Mútua
Formação-Análise ... aqui se situam, esquematicamente, quatro orientações para programas de formação que procuram responder à necessidade de os professores desenvolverem novas disposições relacionais, organizacionais, reflexivas e deliberativas.


(*) Adaptação de uma conferência proferida no II Congresso de Educação do Marista de Salvador (Baía, Brasil), em Julho de 2003. O texto é transcrito com a autorização do autor. São evidentes as marcas da oralidade, bem como os “saltos” entre os parágrafos que resultam dos numerosos cortes por nós realizados.

http://www.cultiva.org.br/

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