Por uma nova polícia
Robson Sávio Reis Souza - do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp) e do Núcleo de Direitos Humanos da Proex/PUC Minas.
O aumento da criminalidade nos últimos anos, atingindo segmentos da classe média brasileira e a consequente vocalização da sociedade civil exigindo novas políticas públicas de segurança foram elementos fundamentais para a convocação da primeira conferência nacional de segurança pública (Conseg), que ocorreu entre 27 e 30 de agosto, em Brasília. A coragem e o empenho da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, foram fundamentais para essa empreitada.
Há mais de um ano, representantes das corporações policiais, sindicatos de operadores da segurança e representantes da sociedade vêm discutindo e preparando a pauta dessa conferência. Nas etapas municipais, estaduais e livres, mais de 500 mil brasileiros participaram do evento. Na etapa nacional, um recorde: três mil conferencistas. Porém, a fragmentação, a diversidade desarticulada e o pouco conhecimento sobre o tema (segurança pública, que até recentemente era “coisa de polícia”) por parte dos representantes da sociedade civil presentes na conferência indicam que é prematuro afirmar sobre consensos sociais nas deliberações do encontro.
A impostergável necessidade de mudanças profundas no sistema de justiça criminal (essa colcha de retalhos, cheia de remendos novos num pano velho), deveria ser o centro dos debates. Afinal, além de novos modelos de gestão e ação policial, há que se criar as bases para uma ampla reestruturação no sistema prisional (ineficiente, caro e desumano), no sistema de medidas sócio-educativas (voltado para os jovens – principais vítimas e autores da criminalidade nos últimos anos) e, não menos importante, no poder judiciário (moroso, seletivo e desconectado de uma sociedade que clama por mais eficiência da justiça para contrapor a sensação de impunidade que campeia em nossa cultura).
Porém, nos bastidores da Conseg as corporações policiais e os sindicatos associados aos operadores da segurança travaram uma verdadeira batalha em torno de dois pontos: a desmilitarização e o chamado ciclo completo de polícia. Ambos tratam de um remendo nas instituições policiais que passariam a ser desmilitarizadas, formando uma única corporação capaz de atuar desde a ação preventivo-repressiva até a atividade judiciário-investigativa, de caráter civil.
Trata-se de um remendo porque os debates acerca dos dois temas giram em torno de argumentos incompletos e por vezes falaciosos: alguns acusam as instituições militares de perpetuarem a prática da violência, da tortura e da ação desproporcional, como em tempos pouco memoráveis. Se, por um lado, os quartéis são cenários da violência institucional, o mesmo acontece nas delegacias de polícia. Ademais, muitos parecem desconhecer que mudanças dessa monta requerem legislações específicas, inclusive com alterações no texto constitucional; portanto, se constituem como propostas e não como deliberação, como desejam certos segmentos.
Há que se registrar, ainda, que o histórico das duas principais instituições policiais brasileiras (as polícias militar e civil, de âmbito estadual) não nos autoriza a defender uma em detrimento da outra. Ambas foram criadas e se institucionalizaram num momento histórico e político no qual prevaleciam os interesses do Estado (diga-se, de algumas elites sociais) em detrimento dos cidadãos e, por outro lado, ressalvadas honrosas exceções, se constituíram como instituições altamente endógenas, preocupadas com a garantia do próprio poder e, em menor escala, com o cumprimento da missão constitucional: a garantia dos direitos de cidadania.
Neste sentido, qualquer alteração que busca remendar essas instituições, ou uma das instituições em detrimento da outra, não resolve o problema das nossas polícias. Será, certamente, mais um engodo entre os vários que temos assistido nos últimos anos, quando de trata de política pública de segurança.
Assim sendo, a saída verdadeiramente transformadora seria a criação, a médio prazo, de uma nova polícia: desmilitarizada, de ciclo completo e sob a supervisão da sociedade, através de mecanismos eficientes de controle interno e externo. Somente assim, poderemos superar as profundas dicotomias existentes na gestão policial brasileira, diminuir a discricionariedade da ação policial, eliminar a quase institucionalizada prática da violência policial e, portanto, pensar numa polícia cidadã.
Obviamente, esta é uma proposta que demanda amplo debate público e tempo suficiente para a maturação. A curto prazo, preparando as bases dessa nova polícia, pode-se caminhar em etapas a serem cumpridas: integração policial, unificação das atividades das duas polícias e, num terceiro momento, a criação da nova polícia, alicerçada nos princípios dos direitos humanos.
(Artigo publicado originalmente no Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 04.09.09, página 09)
Robson Sávio Reis Souza - do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp) e do Núcleo de Direitos Humanos da Proex/PUC Minas.
O aumento da criminalidade nos últimos anos, atingindo segmentos da classe média brasileira e a consequente vocalização da sociedade civil exigindo novas políticas públicas de segurança foram elementos fundamentais para a convocação da primeira conferência nacional de segurança pública (Conseg), que ocorreu entre 27 e 30 de agosto, em Brasília. A coragem e o empenho da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, foram fundamentais para essa empreitada.
Há mais de um ano, representantes das corporações policiais, sindicatos de operadores da segurança e representantes da sociedade vêm discutindo e preparando a pauta dessa conferência. Nas etapas municipais, estaduais e livres, mais de 500 mil brasileiros participaram do evento. Na etapa nacional, um recorde: três mil conferencistas. Porém, a fragmentação, a diversidade desarticulada e o pouco conhecimento sobre o tema (segurança pública, que até recentemente era “coisa de polícia”) por parte dos representantes da sociedade civil presentes na conferência indicam que é prematuro afirmar sobre consensos sociais nas deliberações do encontro.
A impostergável necessidade de mudanças profundas no sistema de justiça criminal (essa colcha de retalhos, cheia de remendos novos num pano velho), deveria ser o centro dos debates. Afinal, além de novos modelos de gestão e ação policial, há que se criar as bases para uma ampla reestruturação no sistema prisional (ineficiente, caro e desumano), no sistema de medidas sócio-educativas (voltado para os jovens – principais vítimas e autores da criminalidade nos últimos anos) e, não menos importante, no poder judiciário (moroso, seletivo e desconectado de uma sociedade que clama por mais eficiência da justiça para contrapor a sensação de impunidade que campeia em nossa cultura).
Porém, nos bastidores da Conseg as corporações policiais e os sindicatos associados aos operadores da segurança travaram uma verdadeira batalha em torno de dois pontos: a desmilitarização e o chamado ciclo completo de polícia. Ambos tratam de um remendo nas instituições policiais que passariam a ser desmilitarizadas, formando uma única corporação capaz de atuar desde a ação preventivo-repressiva até a atividade judiciário-investigativa, de caráter civil.
Trata-se de um remendo porque os debates acerca dos dois temas giram em torno de argumentos incompletos e por vezes falaciosos: alguns acusam as instituições militares de perpetuarem a prática da violência, da tortura e da ação desproporcional, como em tempos pouco memoráveis. Se, por um lado, os quartéis são cenários da violência institucional, o mesmo acontece nas delegacias de polícia. Ademais, muitos parecem desconhecer que mudanças dessa monta requerem legislações específicas, inclusive com alterações no texto constitucional; portanto, se constituem como propostas e não como deliberação, como desejam certos segmentos.
Há que se registrar, ainda, que o histórico das duas principais instituições policiais brasileiras (as polícias militar e civil, de âmbito estadual) não nos autoriza a defender uma em detrimento da outra. Ambas foram criadas e se institucionalizaram num momento histórico e político no qual prevaleciam os interesses do Estado (diga-se, de algumas elites sociais) em detrimento dos cidadãos e, por outro lado, ressalvadas honrosas exceções, se constituíram como instituições altamente endógenas, preocupadas com a garantia do próprio poder e, em menor escala, com o cumprimento da missão constitucional: a garantia dos direitos de cidadania.
Neste sentido, qualquer alteração que busca remendar essas instituições, ou uma das instituições em detrimento da outra, não resolve o problema das nossas polícias. Será, certamente, mais um engodo entre os vários que temos assistido nos últimos anos, quando de trata de política pública de segurança.
Assim sendo, a saída verdadeiramente transformadora seria a criação, a médio prazo, de uma nova polícia: desmilitarizada, de ciclo completo e sob a supervisão da sociedade, através de mecanismos eficientes de controle interno e externo. Somente assim, poderemos superar as profundas dicotomias existentes na gestão policial brasileira, diminuir a discricionariedade da ação policial, eliminar a quase institucionalizada prática da violência policial e, portanto, pensar numa polícia cidadã.
Obviamente, esta é uma proposta que demanda amplo debate público e tempo suficiente para a maturação. A curto prazo, preparando as bases dessa nova polícia, pode-se caminhar em etapas a serem cumpridas: integração policial, unificação das atividades das duas polícias e, num terceiro momento, a criação da nova polícia, alicerçada nos princípios dos direitos humanos.
(Artigo publicado originalmente no Jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, 04.09.09, página 09)
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