A ética e o comunitário
Jesus revolucionou seu tempo ao romper o segregacionismo judeu em relação aos pecadores, enfermos, mulheres, ao tomar refeição com eles
J. B. LIBANIO, JESUÍTA
Arazão humana oscila entre afirmar a prioridade do comunitário sobre o individual ou o contrário. Pesam-lhe argumentos antagônicos. Impõe-se certa tendência entre biólogos de fixar-se na realidade puramente controlável cientificamente do ser humano. A proximidade genética com o animal espanta a ponto de pensar em continuidade indiferenciada principial entre o homem e o mundo animal.
Já se cogita em ser humano fora da genealogia humana, sem pais, sem ato gerador. Ele se reduz à pura natureza, fora da história e da corrente de humanidade no duplo sentido genealógico e eticocultural. No nível do conhecimento, as ciências cognitivas trabalham sobre a hipótese do cérebro computador, da inteligência artificial, acercando o homem da máquina. O ser humano transforma- se em objeto fechado nele mesmo sem abertura nenhuma relacional. A neurociência o controlará ao superar em perfeição tecnológica o comportamentismo de décadas anteriores.
A razão científica batalha fortemente nessa direção. Biotecnólogos assustam-nos ao escrever, com toda naturalidade, sobre as possibilidades de dispor do ser humano como objeto planejável e realizável laboratorialmente. Desconstrói- se o sujeito em nome de realidades genéticas e neuroquímicas. A inexistência da subjetividade humana faz caducar a concepção humanista tradicional. Falar da dimensão convivial do ser humano soa arcaísmo superado. Fundamentalmente, nos constituímos como instintos autocentrados que podem ser comandados pela neurociência e cibernética.
O cristianismo situa-se na vertente oposta. Aposta no ser humano como pessoa, ser relacional. E não o faz simplesmente a partir de personalismo abstrato, mas da sua experiência fundante e da teologia da criação pela Trindade. Oferece contribuição relevante.
No início do cristianismo, os pagãos se encantavam e diziam dos cristãos: "Vejam como eles se amam" (Tertuliano). E tal amor aparecia na vida de comunidade que levavam. No centro, estava a dupla ceia. Ora se reuniam para tomar juntos a refeição e em continuação celebravam a ceia do Senhor, isto é, a Eucaristia. Ora se congregavam com intenção primeira de recordar do Senhor Jesus em torno da refeição eucarística e prosseguiam-na com a comida. Nos dois casos, a dimensão comunitária ocupava o centro.
A carta a Diogneto, documento dos inícios do cristianismo, insiste na originalidade do proceder do cristão, mesmo quando fazem atos iguais aos outros. Neles inserem a especificidade cristã. E ela, em muitos momentos, se expressava pelo espírito comunitário.
Em que o comunitário revela dimensão ética? Jesus revolucionou o seu tempo ao romper o segregacionismo judeu em relação aos pecadores, enfermos, publicanos, mulheres, ao tomar refeição com eles. O valor universal da convivência vencia os preconceitos religiosos e raciais. Os cristãos repetirão tal gesto da ceia no mesmo espírito, de modo que Paulo os adverte severamente quando discriminam socialmente os participantes.
Pensando a ética nessa perspectiva, os encontros comunitários realizam e concretizam a realidade ontológica convivial do ser humano, qual humanum universal. Pois, em última análise, o ser concreto humano se constitui aberto para o comunitário e só se realiza nele por ter sido criado por um Deus que é comunidade - Pai, Filho e Espírito Santo. "No princípio", escreve L. Boff, "está a comunhão dos Três e não a solidão do Um." Nascemos da comunhão e não da solidão. Portanto, para ela somos destinados e ela nos constitui ontologicamente. E ao agir na construção de laços comunitários de encontro com o individualismo dominante na sociedade atual reafirmamos o valor ético humano.
Teólogo, escritor e professor, o padre João Batista Libanio escreve neste espaço aos domingos.
Publicado em: 23/09/2007
Fonte: Jornal o Tempo
Jesus revolucionou seu tempo ao romper o segregacionismo judeu em relação aos pecadores, enfermos, mulheres, ao tomar refeição com eles
J. B. LIBANIO, JESUÍTA
Arazão humana oscila entre afirmar a prioridade do comunitário sobre o individual ou o contrário. Pesam-lhe argumentos antagônicos. Impõe-se certa tendência entre biólogos de fixar-se na realidade puramente controlável cientificamente do ser humano. A proximidade genética com o animal espanta a ponto de pensar em continuidade indiferenciada principial entre o homem e o mundo animal.
Já se cogita em ser humano fora da genealogia humana, sem pais, sem ato gerador. Ele se reduz à pura natureza, fora da história e da corrente de humanidade no duplo sentido genealógico e eticocultural. No nível do conhecimento, as ciências cognitivas trabalham sobre a hipótese do cérebro computador, da inteligência artificial, acercando o homem da máquina. O ser humano transforma- se em objeto fechado nele mesmo sem abertura nenhuma relacional. A neurociência o controlará ao superar em perfeição tecnológica o comportamentismo de décadas anteriores.
A razão científica batalha fortemente nessa direção. Biotecnólogos assustam-nos ao escrever, com toda naturalidade, sobre as possibilidades de dispor do ser humano como objeto planejável e realizável laboratorialmente. Desconstrói- se o sujeito em nome de realidades genéticas e neuroquímicas. A inexistência da subjetividade humana faz caducar a concepção humanista tradicional. Falar da dimensão convivial do ser humano soa arcaísmo superado. Fundamentalmente, nos constituímos como instintos autocentrados que podem ser comandados pela neurociência e cibernética.
O cristianismo situa-se na vertente oposta. Aposta no ser humano como pessoa, ser relacional. E não o faz simplesmente a partir de personalismo abstrato, mas da sua experiência fundante e da teologia da criação pela Trindade. Oferece contribuição relevante.
No início do cristianismo, os pagãos se encantavam e diziam dos cristãos: "Vejam como eles se amam" (Tertuliano). E tal amor aparecia na vida de comunidade que levavam. No centro, estava a dupla ceia. Ora se reuniam para tomar juntos a refeição e em continuação celebravam a ceia do Senhor, isto é, a Eucaristia. Ora se congregavam com intenção primeira de recordar do Senhor Jesus em torno da refeição eucarística e prosseguiam-na com a comida. Nos dois casos, a dimensão comunitária ocupava o centro.
A carta a Diogneto, documento dos inícios do cristianismo, insiste na originalidade do proceder do cristão, mesmo quando fazem atos iguais aos outros. Neles inserem a especificidade cristã. E ela, em muitos momentos, se expressava pelo espírito comunitário.
Em que o comunitário revela dimensão ética? Jesus revolucionou o seu tempo ao romper o segregacionismo judeu em relação aos pecadores, enfermos, publicanos, mulheres, ao tomar refeição com eles. O valor universal da convivência vencia os preconceitos religiosos e raciais. Os cristãos repetirão tal gesto da ceia no mesmo espírito, de modo que Paulo os adverte severamente quando discriminam socialmente os participantes.
Pensando a ética nessa perspectiva, os encontros comunitários realizam e concretizam a realidade ontológica convivial do ser humano, qual humanum universal. Pois, em última análise, o ser concreto humano se constitui aberto para o comunitário e só se realiza nele por ter sido criado por um Deus que é comunidade - Pai, Filho e Espírito Santo. "No princípio", escreve L. Boff, "está a comunhão dos Três e não a solidão do Um." Nascemos da comunhão e não da solidão. Portanto, para ela somos destinados e ela nos constitui ontologicamente. E ao agir na construção de laços comunitários de encontro com o individualismo dominante na sociedade atual reafirmamos o valor ético humano.
Teólogo, escritor e professor, o padre João Batista Libanio escreve neste espaço aos domingos.
Publicado em: 23/09/2007
Fonte: Jornal o Tempo
0 Comments:
Post a Comment