domingo, 16 de dezembro de 2007

Ética e relativismo

Ética e relativismo

A ética não tolera o relativismo. Como enfrentar essa tensão entre o crescimento do pensamento relativo e as exigências de universalidade da ética?

J. B. LIBANIO, JESUÍTA

Poucas realidades cotidianas nos parecem evidentes como o relativismo. O ser humano, por natureza e por profunda capacidade criativa, abomina o universal, o estandartizado. Submete- se a ele por imposição ou por engodo. As escolas primaram antigamente por manter uniforme obrigatório. Mesmo sob tal imposição, os alunos buscavam toques de originalidade para fugir ao universal. No dia, porém, em que o/a diretor/a modificava o regulamento de trajá-lo, os alunos vinham, no dia seguinte, vestidos todos de modo diferente. E muitos outros exemplos confirmariam tal rejeição de universalizações teóricas e práticas por parte do ser humano livre, autônomo e criativo.
A ética, por sua vez, não tolera o relativismo. Ética relativa contradiz- lhe o próprio nascimento. Ela se constitui precisamente, ao captar o universal nos comportamentos e costumes de uma cultura, de uma sociedade.
Como enfrentar essa tensão entre o crescimento do pensamento relativo e as exigências de universalidade da ética? O atual papa, antes de ser eleito, na homilia que fez na abertura do conclave a 18 de abril de 2005, objurgava o relativismo por apresentarse como única postura à altura dos tempos atuais. Achacou-lhe a pecha de "ditadura que não reconhece nada como definitivo e que deixa como última medida só o próprio eu e os seus desejos".
O relativismo desafia-nos a lucidez ética. Tão maléfico como ele mostra-se uma ética fundamentalista, reacionária, que absolutiza formulações superadas do passado, que assume os ensinamentos, as verdades na pura objetividade dos termos, como se Descartes e Kant não tivessem existido.
A revolução cartesiana e a kantiana derrubaram definitivamente a pretensão de que a ética se impusesse de fora a partir de autoridades, a valer por ela mesma, independente do sujeito e da cultura em que se exprimiu e foi praticada.
Entre o relativismo que desmonta toda ética, que reduz o ser humano a espelho da realidade no qual se refletiriam as "pseudo-evidências especulares" que ele tomaria ingenuamente como realidades e a rigidez ética de instituições totalitárias, vige o espaço para a lucidez ética.
Ao assumir o relativismo, renuncia- se a toda ontologia, metafísica e religião que pretendem fundar objetivamente o conhecimento, o espírito. Neste caso, não existiriam respostas objetivamente certas ou erradas aos problemas que levantamos. Em lugar de certezas filosóficas, propugnar- se-ia pragmatismo prudente e circunstancial.
No outro extremo, cairíamos no imobilismo histórico, afastando- nos cada vez mais da cultura presente. Estabelecer-se-ia diálogo entre surdos. A ética aguça o olhar para escapar desse dilema doloroso.
A lucidez não nos permite viver entregues ao arbítrio do relativismo nem ao autoritarismo do fundamentalismo ortodoxo e estático. Ao longo do pensamento, o ser humano estabeleceu invariáveis de verdade que se mantiveram no cerne, no coração, na substância maior (em oposição ao relativismo), embora ele as reformulasse em perspectivas novas e abertas (em oposição ao ortodoxismo fixista). A trajetória dialética aberta, não determinista, permite caminharmos pela história, fugindo do rochedo de Cila sem cair no abismo de Caribde. Dialética no sentido de ir negando os limites das formulações éticas, mas mantendo-lhes o coração. Não determinista porque o fazemos dentro de processo imperfeito, com lembranças e amnésias, percepções claras e confusas. No entanto, a fragilidade não nos nega o mínimo de objetividade que atravessa os tempos e lugares, enriquecendo-se.
Nem excesso prepotente de confiança na inteligência humana que estabeleça formulações éticas definitivas uma vez para sempre, sem ulteriores discussões, nem viver na noite relativa, sem a luz da ética objetiva. A lucidez nos conduz à discussão, à busca comum de verdades éticas e não à renúncia de tal aventura por já termos possuído a sua totalidade clara ou por nunca alcançá-la em mínima dose.
Teólogo, escritor e professor, o padre João Batista Libanio escreve neste espaço aos domingos.

Publicado em: 16/12/2007

Fonte: Jornal o Tempo, Belo Horizonte, Minas Gerais

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