01/11/2007
Antídoto ao novo dependentismo
Marcio Pochmann
Pelo pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, o sentido histórico da expansão econômica brasileira seguiu, em grande medida, o corolário da sucessão de "milagres" (ciclo da cana-de-açúcar, do ouro, do café). Eles "salvaram" o país da decadência, porém não desembocaram no desenvolvimento econômico e social imaginado pelo conjunto da nação. Nessa perspectiva, o desenvolvimento transformou-se no mito, conforme assevera Celso Furtado, em que o novo rompe pouco com o passado, quando não o reproduz pelo entorno da dependência externa.
Após o quarto de século de relativa decadência nacional (1980-2005) que sucedeu ao ciclo da industrialização nacional (1930 - 1980), o país sinaliza que parece se encontrar diante de um novo "milagre". Ou seja, o ciclo de expansão do agronegócio, cujo destaque maior é a agroenergia, como responsável por uma profunda reorganização da estrutura produtiva e social do país.
Não parece haver dúvidas que, com isso, o país se recoloca na Divisão Internacional do Trabalho como protagonista de uma matriz energética menos poluidora e geradora de uma nova riqueza. Essa oportunidade histórica, contudo, dificilmente se completará plenamente sem haver uma profunda alteração no papel do Estado, pois se encontra acompanhada dos vetores da concentração da riqueza e do novo dependentismo.
Do que já se observa até o momento, o país parece seguir trajetória equivalente à da grande empresa agromercantil açucareira do final do Século XVI, orientada e dependente das necessidades de acumulação externa. Lembre-se de que, naquela oportunidade, o ciclo da cana-de-açúcar tinha dois traços marcantes. O primeiro, destacado por Caio Prado Junior, era a importância da organização da produção do açúcar na formação das estruturas econômicas e sociais, responsáveis pela profunda concentração da propriedade da terra, da monocultura em grandes plantações, o desmatamento e o uso rebaixado da mão-de-obra que a tornava marginal na participação do consumo interno.
O segundo, percebido por Milton Santos, foi traduzido pela consagração dos dois circuitos que caracterizam a economia nacional: o superior, ocupado por grandes empreendimentos assentados na modernização tecnológica, na inserção internacional e no apoio do Estado; e o inferior, conformado pelo conjunto heterogêneo de atividades de pequena dimensão, geralmente sem maiores apoios do Estado, atrasado tecnologicamente e voltado às parcelas pobres da população.
Brasil precisa criar empresa pública de agroenergia para garantir
oportunidades universais de participação do circuito inferior da economia
Com o novo ciclo de exportação de commodities (carnes e couro, sucos, celulose, madeira, etanol, soja, entre outros) reorganizam-se as interfaces do restrito grupo das megacorporações transnacionais no Brasil, por meio da desnacionalização das empresas rurais, da internacionalização de parte do território, da reconcentração fundiária e da intensificação no grau de exploração dos trabalhadores. Da mesma forma que o Brasil passou de 60 para 800 engenhos de açúcar na virada do Século XVI para o XVII, o país deve saltar de menos de cem usinas sucroalcooleiras para próximo de 600 nessa passagem dos séculos XX para XXI, caso queira atender a 5% de todo o mercado mundial de etanol. O que significa ocupar quase 30 milhões de hectares de área plantada somente com a cana-de-açúcar.
Nessa toada, não cabe, mais uma vez, repetir o passado da grande empresa agromercantil do açúcar, dependente da extroversão econômica e da concentração da riqueza. Ainda há tempo para que o país conceda um passo urgente e decisivo na reinversão do ciclo da agroenergia.
Para isso, o Brasil precisa constituir, por exemplo, uma empresa pública de agroenergia, com o compromisso de garantir oportunidades universais de participação do circuito inferior da economia (pequenos e médios produtores rurais e de microusineiros sucroalcooleiros). Da mesma forma, caberia ainda o desenvolvimento de capacidades orientadas à centralização do comércio da energia renovável no país.
Por fim, o estabelecimento de um grande acordo em torno das relações de trabalho vinculadas à agroenergia, necessário para interromper a difusão do padrão de emprego asiático no campo e nas cidades por onde se localiza o complexo produtivo. Em síntese, evitar a difusão do emprego associado a elevadas jornadas de trabalho, forte rotatividade e baixa remuneração.
Sem rompimento com a repetição do passado, dificilmente serão construídos os elementos portadores de futuro. Sabe-se que são necessárias medidas governamentais que podem, talvez, contrariar interesses importantes, porém inegáveis, como antídotos do novo dependentismo que se forma em torno do ciclo do agronegócio no Brasil.
Sem um programa nacional comandado pela empresa pública, as organizações das atividades de agroenergia no Brasil tendem a se integrar à estratégia internacional monopolística das grandes corporações, que as coordenam não necessariamente a serviço dos interesses do conjunto da nação. Assim, a produção e a exportação de agroenergia, dependente exclusivamente do livre jogo das forças de mercado, podem produzir desvantagens e graves conseqüências para o plano da independência nacional. A decadência pode estar próxima do fim, porém a dependência não.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Escreve mensalmente às quintas-feiras.
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