Fonte: O Tempo, 13.04.07
J. B. Libânio. Teólogo, professor, padre jesuíta jblibanio@faculdadejesuita.edu.br
A ética e a face do outro
Todo olhar desperta-nos para a responsabilidade
Na solidão do eu, não existe ética. Enquanto permanecemos centrados em nós mesmos, não nos aflora nenhuma provocação ética.
Regemos a orquestra da vida segundo a partitura de nossos interesses, desejos, sonhos. Moldamos a realidade à nossa imagem e semelhança. Entramos no palácio dos espelhos em que a nossa própria figura se multiplica ao infinito.
Tudo começa e terminaemnós mesmos. Reina o indivíduo sobre a pessoa, o próprio sobre o alheio. Realiza-se o veredicto de mrs. Thatcher: "Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos".
"Desde que o outrome olha, sou responsável por ele", observa Levinas. A face do outro assume o caráter sagrado de quem nos acorda do sono individualista. Nasce a ética. Estabelece-se o princípio da alteridade na gestação do nosso modo de proceder.
Já não fazemos única e exclusivamente o que nos apetece segundo o bel-prazer. Interfere a face do outro que nos questiona, nos incomoda. Caminhamos sorridentes pela rua, bem almoçados, satisfeitos e, de repente, um mendigo estende a mão.
A ética da satisfação do apetite primeiro do comer, que nunca nos perturbara o sono, grita no rosto faminto daquele outro plantado diante de nós. Por que temos o direito sagrado da saciar-nos a fome e aquele pobre não?
Que responsabilidade assumimos diante de tal situação? A fome é antiética. Todo olhar desperta-nos para a responsabilidade. Aquele que acende na noite da fome do pobre interpela- nos ainda mais fortemente. A sociedade atual manifesta traço de crueldade, ao tornar a pobreza invisível.
Cobre com duplo véu a presença do pobre. Isola-o em favelas e afasta-o para o mais longe possível do alcance da vista dos aquinhoados de muitos bens.
Estes trancam- se em condomínios sofisticados de modo que nenhum rosto de pobreza e fome se aproxima deles. Andam em carros de vidro fumê que os esconde e defende. Freqüentam shoppings, hotéis e aeroportos, onde não circulam famintos.
Some a face do outro. Apaga-se a ética. Vale o provérbio italiano: "longe dos olhos, longe do coração". E o coração funciona como a sede da ética. Se nos distanciamos do outro, ao viver unicamente no meio de caras iguais, que ostentam a mesma riqueza, a nossa sensibilidade e responsabilidade pelos necessitados embotam.
A planície da identidade dos que comungam dos mesmos interesses e benesses impede que se veja a irregularidade distinta da pobreza. Sem o diferente do outro, a vida unicamente entre os mesmos silencia qualquer inquietação de justiça.
Faz irromper o grito ético o desfile diário dos excluídos e marginalizados, vindos das infinitas senzalas, que teimam em vir acordar o sono alienado dos senhores da casa grande. Enquanto houver tal choque, a ética social tem chance de nascer.
Mas o dia em que o poder ocultar definitiva e mentirosamente as faces diferentes do pobre, o futuro humano da sociedade corre risco de perder-se em grotescas formas de injustiça social.
Publicado em: 13/04/2008
J. B. Libânio. Teólogo, professor, padre jesuíta jblibanio@faculdadejesuita.edu.br
A ética e a face do outro
Todo olhar desperta-nos para a responsabilidade
Na solidão do eu, não existe ética. Enquanto permanecemos centrados em nós mesmos, não nos aflora nenhuma provocação ética.
Regemos a orquestra da vida segundo a partitura de nossos interesses, desejos, sonhos. Moldamos a realidade à nossa imagem e semelhança. Entramos no palácio dos espelhos em que a nossa própria figura se multiplica ao infinito.
Tudo começa e terminaemnós mesmos. Reina o indivíduo sobre a pessoa, o próprio sobre o alheio. Realiza-se o veredicto de mrs. Thatcher: "Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos".
"Desde que o outrome olha, sou responsável por ele", observa Levinas. A face do outro assume o caráter sagrado de quem nos acorda do sono individualista. Nasce a ética. Estabelece-se o princípio da alteridade na gestação do nosso modo de proceder.
Já não fazemos única e exclusivamente o que nos apetece segundo o bel-prazer. Interfere a face do outro que nos questiona, nos incomoda. Caminhamos sorridentes pela rua, bem almoçados, satisfeitos e, de repente, um mendigo estende a mão.
A ética da satisfação do apetite primeiro do comer, que nunca nos perturbara o sono, grita no rosto faminto daquele outro plantado diante de nós. Por que temos o direito sagrado da saciar-nos a fome e aquele pobre não?
Que responsabilidade assumimos diante de tal situação? A fome é antiética. Todo olhar desperta-nos para a responsabilidade. Aquele que acende na noite da fome do pobre interpela- nos ainda mais fortemente. A sociedade atual manifesta traço de crueldade, ao tornar a pobreza invisível.
Cobre com duplo véu a presença do pobre. Isola-o em favelas e afasta-o para o mais longe possível do alcance da vista dos aquinhoados de muitos bens.
Estes trancam- se em condomínios sofisticados de modo que nenhum rosto de pobreza e fome se aproxima deles. Andam em carros de vidro fumê que os esconde e defende. Freqüentam shoppings, hotéis e aeroportos, onde não circulam famintos.
Some a face do outro. Apaga-se a ética. Vale o provérbio italiano: "longe dos olhos, longe do coração". E o coração funciona como a sede da ética. Se nos distanciamos do outro, ao viver unicamente no meio de caras iguais, que ostentam a mesma riqueza, a nossa sensibilidade e responsabilidade pelos necessitados embotam.
A planície da identidade dos que comungam dos mesmos interesses e benesses impede que se veja a irregularidade distinta da pobreza. Sem o diferente do outro, a vida unicamente entre os mesmos silencia qualquer inquietação de justiça.
Faz irromper o grito ético o desfile diário dos excluídos e marginalizados, vindos das infinitas senzalas, que teimam em vir acordar o sono alienado dos senhores da casa grande. Enquanto houver tal choque, a ética social tem chance de nascer.
Mas o dia em que o poder ocultar definitiva e mentirosamente as faces diferentes do pobre, o futuro humano da sociedade corre risco de perder-se em grotescas formas de injustiça social.
Publicado em: 13/04/2008
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