Professor explica por que ler Nietzsche hoje; leia capítulo da Folha Online
Um breve e abrangente livro sobre Nietzsche, pensador que refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens do fim do século 19. É o que o leitor encontra no volume da coleção "Folha Explica" sobre o autor - o primeiro capítulo de "Nietzsche" pode ser lido abaixo.
No livro, Oswaldo Giacóia Junior mostra porque é impossível se colocar à altura dos principais temas e questões do nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche, um dos pensadores mais provocativos da filosofia moderna.
Para Giacóia Junior, o impacto da filosofia de Nietzsche "advém de sua extraordinária clarividência". "Ele pressentiu, em estado de gestação, as ameaças mais fatais de nosso tempo. Anteviu o panorama sombrio que poderia advir do projeto sociopolítico de uma sociedade de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade ocidental caminhava, desde então, para um nivelamento por baixo", explica o autor.
Oswaldo Giacóia Júnior é professor de filosofia na Unicamp. Formado em Direito pela USP, Giacóia é mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Filosofia pela Freie Uinversität Berlin (Alemanha). Além de "Nietzsche", Giacóia é autor de "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea", "Os Labirintos da Alma" (1997), "Nietzsche & Para Além de Bem e Mal" (2002) e "Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida" (2005).
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
*
POR QUE LER NIETZSCHE HOJE
Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.
Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso, Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.
Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial.
Nietzsche se opõe à supressão das diferenças, à padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião.
O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição pagã greco-romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.
Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo, as noções de Apolo e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retorno e niilismo e a figura da morte de Deus.
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?" 1
Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida --sobretudo as suas próprias convicções-- e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em direção a um destino que ainda não se pode discernir.
A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva --a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura humana na história-- é também um cântico de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase, gravidade e leveza.
Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em tornar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.
Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversário de Platão, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristão, dá, no entanto, à sua autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o título Ecce Homo ("Eis o Homem") --expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco antes da Paixão.
Nietzsche, o filósofo-artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico, poeticamente sugestivo; só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição:
Moro em minha própria casa
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre
Que não riu de si também.2
Sem extravasar os limites dos livros desta série, Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche. Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche --não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, às vezes, também contra Nietzsche.
1 Heidegger, "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102.
2 Epígrafe de A Gaia Ciência; em: Nietzsche, Obra Incompleta. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974; p. 195.
"Nietzsche"
Um breve e abrangente livro sobre Nietzsche, pensador que refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens do fim do século 19. É o que o leitor encontra no volume da coleção "Folha Explica" sobre o autor - o primeiro capítulo de "Nietzsche" pode ser lido abaixo.
No livro, Oswaldo Giacóia Junior mostra porque é impossível se colocar à altura dos principais temas e questões do nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche, um dos pensadores mais provocativos da filosofia moderna.
Para Giacóia Junior, o impacto da filosofia de Nietzsche "advém de sua extraordinária clarividência". "Ele pressentiu, em estado de gestação, as ameaças mais fatais de nosso tempo. Anteviu o panorama sombrio que poderia advir do projeto sociopolítico de uma sociedade de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade ocidental caminhava, desde então, para um nivelamento por baixo", explica o autor.
Oswaldo Giacóia Júnior é professor de filosofia na Unicamp. Formado em Direito pela USP, Giacóia é mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Filosofia pela Freie Uinversität Berlin (Alemanha). Além de "Nietzsche", Giacóia é autor de "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea", "Os Labirintos da Alma" (1997), "Nietzsche & Para Além de Bem e Mal" (2002) e "Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida" (2005).
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
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POR QUE LER NIETZSCHE HOJE
Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.
Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso, Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.
Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial.
Nietzsche se opõe à supressão das diferenças, à padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião.
O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição pagã greco-romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.
Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo, as noções de Apolo e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retorno e niilismo e a figura da morte de Deus.
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?" 1
Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida --sobretudo as suas próprias convicções-- e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em direção a um destino que ainda não se pode discernir.
A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva --a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura humana na história-- é também um cântico de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase, gravidade e leveza.
Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em tornar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.
Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversário de Platão, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristão, dá, no entanto, à sua autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o título Ecce Homo ("Eis o Homem") --expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco antes da Paixão.
Nietzsche, o filósofo-artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico, poeticamente sugestivo; só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição:
Moro em minha própria casa
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre
Que não riu de si também.2
Sem extravasar os limites dos livros desta série, Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche. Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche --não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, às vezes, também contra Nietzsche.
1 Heidegger, "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102.
2 Epígrafe de A Gaia Ciência; em: Nietzsche, Obra Incompleta. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974; p. 195.
"Nietzsche"
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