Século 21 será de 'penúria alimentar' Economista Bruno Parmentier diz que é preciso uma revolução para reverter crise mundial que eleva preço dos produtos
Crítico da produção de biocombustíveis de cereais e oleaginosas, ele afirma que continuidade da produção vai 'converter-se em crime'
Georges Gobet - 25.abr.08/France Presse
Fazendeiro do Senegal usa roupa de espigas durante protesto
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
Autor de um livro que faz barulho na Europa por dizer que o século 21 será uma era de penúria alimentar, o economista Bruno Parmentier diz que vai ser necessária uma revolução para reverter a atual crise mundial: na agricultura, no comércio, nos hábitos. Diretor da Escola Superior de Agricultura de Angers (ESA), a mais importante do setor na França, Parmentier critica as organizações internacionais que passaram anos desestimulando a produção agrícola e os biocombustíveis, mas isenta o álcool do Brasil.
Em entrevista à Folha, o autor de 'Nourrir l'humanité' (Alimentar a humanidade) defendeu os subsídios aos produtores, disse que foi um 'erro histórico' confiar a negociação agrícola à OMC (Organização Mundial do Comércio) e questionou a 'contradição' do Brasil, que se torna um grande exportador de alimentos, mas não consegue erradicar a fome.
Leia trechos da entrevista, concedida por e-mail.
FOLHA - Teria sido possível evitar a crise atual?
BRUNO PARMENTIER - Com certeza. Em meu livro, eu explico que o século 21 será de penúria alimentar. Por vários motivos. O esgotamento dos recursos naturais faz com que a revolução agrícola dos anos 1960, que usa muita terra, água e energia, não possa ser levada adiante num período de escassez.
A química já deu à agricultura tudo o que podia no século 20, com os fertilizantes, os fungicidas, os inseticidas e os herbicidas. Hoje ela custa muito caro em termos de energia e acabou poluindo o solo e as águas. Em matéria agrícola, o século da química está chegando ao fim e é preciso deslanchar o da biologia.
Só em 2007 o aquecimento global e suas conseqüências para a agricultura passaram ao primeiro plano das preocupações globais. Será que a Austrália está vivendo uma sucessão de azares com suas estiagens repetidas, ou terá o fenômeno se tornado definitivo?
A elevação acelerada do nível de vida em países asiáticos industrializados provocou um enriquecimento dos hábitos alimentares, com a passagem para uma alimentação à base de produtos animais -carne na China e derivados do leite na Índia. A pressão que essas populações exercem sobre os recursos do planeta se acentua rapidamente. O problema energético mundial já passou para o primeiro plano de maneira duradoura.
Ele afeta a agricultura duplamente: por um lado porque a revolução tecnológica precedente era altamente consumidora de energia. Em segundo, porque se passou a exigir da agricultura que ela preencha os pratos e os tanques dos automóveis. É importante acabar imediatamente com esse erro histórico: não temos cereais e oleaginosas suficientes e queimá-los torna-se um crime.
Destruímos sistematicamente todos os programas de apoio à agricultura produtora de alimentos em todo o mundo. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional chegaram a impor esse desengajamento como condição para a concessão de sua ajuda aos países endividados, incentivando-os apenas a produzir culturas industriais que lhes permitiriam obter nos mercados internacionais divisas para saldarem suas dívidas.
FOLHA - É possível frear a alta dos preços de alimentos?
PARMENTIER - Sim, podemos sair desta crise, mas ela vai durar muito tempo. O Banco Mundial admitiu que se engana há 20 anos e que precisa fazer uma revisão completa de suas políticas para, a partir de agora, privilegiar o desenvolvimento da pequena agricultura alimentar. Isso pode produzir resultados, mas apenas dentro de vários anos -pelo menos entre cinco e dez.
FOLHA - Qual é o impacto dos biocombustíveis nos preços dos alimentos?
PARMENTIER - Para mim, até hoje o único impacto real e comprovado é o dos biocombustíveis norte-americanos à base de milho, que desde o início de 2007 provocaram um verdadeiro choque no México, quando o preço da tortilha teve um aumento de 50%.
Mas, se continuarmos com essa política insensata de queimar cereais ou oleaginosos em nossos motores, esse erro inicial dos agrocombustíveis de primeira geração vai de fato converter-se em crime.
FOLHA - E o álcool produzido no Brasil?
PARMENTIER - Existe uma diferença essencial: no Brasil vocês já estão de certo modo nos biocombustíveis de segunda geração, ou seja, feitos a partir da planta inteira, a biomassa -logo, não a partir do grão. Me parece que vocês estão indicando o caminho a seguir, e, é claro, sua produtividade é bem melhor que a nossa. Em contrapartida, observo que o Brasil, grande país agrícola, fortemente exportador, não consegue alimentar corretamente sua própria população.
O Brasil terá que resolver essa contradição: alimenta países muito distantes, enche muitos tanques de combustível, mas ainda há milhões de brasileiros que têm fome.
FOLHA - Um acordo na Rodada Doha poderia ajudar a resolver o problema, ao facilitar as relações comerciais?
PARMENTIER - Nesse ponto, sou radical: o fato de a responsabilidade pela agricultura e a alimentação mundial ter sido tirada da FAO (Organização da ONU para Alimentação e Agricultura) para ser confiada a uma assembléia de comerciantes, a OMC, é um erro histórico. Esta crise nos permite ver muito bem que os comerciantes são totalmente incapazes de resolver o problema da fome no mundo. Acreditar que comerciantes vão levar a povoados no fim do mundo produtos agrícolas que pesam muito, que apodrecem facilmente, para dá-los a pessoas que não têm dinheiro, é uma fraude intelectual.
Não se pode alimentar a humanidade com os excedentes de produção de alguns países. Se o Brasil pode alimentar 50, 100 ou 150 milhões de pessoas além de sua própria população, tanto melhor -é um serviço verdadeiro que prestará à humanidade, e será bom para ele, que, de passagem, se enriquecerá. Mas estamos falando hoje em 850 milhões de pessoas que passam fome, e muito provavelmente de outros 50, 100 ou 150 milhões a mais até o final de 2008, sendo que a população mundial aumenta em 80 milhões de pessoas a cada ano.
Não compreendo como pessoas que raciocinam possam imaginar que esse comércio vá evitar as revoltas provocadas pela fome. Vejam o primeiro reflexo da ação dos grandes países exportadores de arroz que fecharam suas fronteiras e proibiram as exportações, para garantir a alimentação de suas próprias populações. No século 21, depender de outros países para se alimentar é fazer uma aposta num futuro extremamente perigoso.
É preciso reavaliar por completo a organização da agricultura mundial. Não há nada mais urgente que fechar as fronteiras, e organizar, nos países que têm fome, a mesma política que deu certo nos grandes países povoados que conseguiram se alimentar, como Estados Unidos, Europa e China: fechar as fronteiras para proteger sua agricultura e dar apoio maciço a seu desenvolvimento. Mas isso não deve preocupar o Brasil: ele ainda terá por muito tempo compradores para seus produtos, pois vamos viver um período prolongado de penúria.
FOLHA - Quais são as maiores ameaças à segurança alimentar?
PARMENTIER - Estamos chegando aos limites dos recursos do planeta, tudo o que antes era abundante se torna limitado. É preciso saber produzir com menos e parar de degradar o clima. O outro desafio é o de encontrar políticas de desenvolvimento da agricultura numa grande parte do planeta onde pura e simplesmente se parou de dar trabalho a camponeses.
FOLHA - Os subsídios dos países ricos a seus produtores contribuem para a alta dos preços de alimentos, como diz o presidente Lula?
PARMENTIER - Não creio que as subvenções agrícolas realmente causem a insegurança alimentar. O problema é que apenas os países ricos têm condições de pagar uma verdadeira segurança alimentar. Mas pensar que os países mais pobres conseguirão exportar sua produção agrícola à Europa e aos Estados Unidos se todas as fronteiras forem abertas me parece um engodo intelectual: eles não têm excedentes, e, quando produzem, sua produtividade é muito menor. A solução é exatamente o inverso: é preciso generalizar a proteção da agricultura produtora de alimentos e a subvenção a essa agricultura.
FOLHA - Estamos nos dirigindo a uma mudança nos hábitos alimentares mundiais?
PARMENTIER - Com certeza. É urgente acelerar o processo de transição alimentar. Dos 6,655 bilhões de habitantes do planeta, 887 milhões são subnutridos e 1,12 bilhão têm excesso de peso. Isso faz sentido? É preciso que os ricos comam menos carne e açúcar, mas também que centenas de milhões de pobres possam comer carne e açúcar de vez em quando. Produziremos mais, em total, no planeta, mas a divisão do que se produz acabará sendo melhor para a saúde de todos. Isso é de nosso interesse coletivo, é claro.
Mas, além dessa mudança de hábitos alimentares, é preciso parar de desperdiçar. Como é possível que cause alegria em seu país, por exemplo, a abertura de restaurantes em que se paga um preço fixo ao entrar e a comida é ilimitada? Isso é provavelmente algo que tem suas raízes na cultura brasileira, mas que não corresponde de modo algum às exigências e aos desafios do século 21.
Tradução de CLARA ALLAIN
Crítico da produção de biocombustíveis de cereais e oleaginosas, ele afirma que continuidade da produção vai 'converter-se em crime'
Georges Gobet - 25.abr.08/France Presse
Fazendeiro do Senegal usa roupa de espigas durante protesto
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
Autor de um livro que faz barulho na Europa por dizer que o século 21 será uma era de penúria alimentar, o economista Bruno Parmentier diz que vai ser necessária uma revolução para reverter a atual crise mundial: na agricultura, no comércio, nos hábitos. Diretor da Escola Superior de Agricultura de Angers (ESA), a mais importante do setor na França, Parmentier critica as organizações internacionais que passaram anos desestimulando a produção agrícola e os biocombustíveis, mas isenta o álcool do Brasil.
Em entrevista à Folha, o autor de 'Nourrir l'humanité' (Alimentar a humanidade) defendeu os subsídios aos produtores, disse que foi um 'erro histórico' confiar a negociação agrícola à OMC (Organização Mundial do Comércio) e questionou a 'contradição' do Brasil, que se torna um grande exportador de alimentos, mas não consegue erradicar a fome.
Leia trechos da entrevista, concedida por e-mail.
FOLHA - Teria sido possível evitar a crise atual?
BRUNO PARMENTIER - Com certeza. Em meu livro, eu explico que o século 21 será de penúria alimentar. Por vários motivos. O esgotamento dos recursos naturais faz com que a revolução agrícola dos anos 1960, que usa muita terra, água e energia, não possa ser levada adiante num período de escassez.
A química já deu à agricultura tudo o que podia no século 20, com os fertilizantes, os fungicidas, os inseticidas e os herbicidas. Hoje ela custa muito caro em termos de energia e acabou poluindo o solo e as águas. Em matéria agrícola, o século da química está chegando ao fim e é preciso deslanchar o da biologia.
Só em 2007 o aquecimento global e suas conseqüências para a agricultura passaram ao primeiro plano das preocupações globais. Será que a Austrália está vivendo uma sucessão de azares com suas estiagens repetidas, ou terá o fenômeno se tornado definitivo?
A elevação acelerada do nível de vida em países asiáticos industrializados provocou um enriquecimento dos hábitos alimentares, com a passagem para uma alimentação à base de produtos animais -carne na China e derivados do leite na Índia. A pressão que essas populações exercem sobre os recursos do planeta se acentua rapidamente. O problema energético mundial já passou para o primeiro plano de maneira duradoura.
Ele afeta a agricultura duplamente: por um lado porque a revolução tecnológica precedente era altamente consumidora de energia. Em segundo, porque se passou a exigir da agricultura que ela preencha os pratos e os tanques dos automóveis. É importante acabar imediatamente com esse erro histórico: não temos cereais e oleaginosas suficientes e queimá-los torna-se um crime.
Destruímos sistematicamente todos os programas de apoio à agricultura produtora de alimentos em todo o mundo. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional chegaram a impor esse desengajamento como condição para a concessão de sua ajuda aos países endividados, incentivando-os apenas a produzir culturas industriais que lhes permitiriam obter nos mercados internacionais divisas para saldarem suas dívidas.
FOLHA - É possível frear a alta dos preços de alimentos?
PARMENTIER - Sim, podemos sair desta crise, mas ela vai durar muito tempo. O Banco Mundial admitiu que se engana há 20 anos e que precisa fazer uma revisão completa de suas políticas para, a partir de agora, privilegiar o desenvolvimento da pequena agricultura alimentar. Isso pode produzir resultados, mas apenas dentro de vários anos -pelo menos entre cinco e dez.
FOLHA - Qual é o impacto dos biocombustíveis nos preços dos alimentos?
PARMENTIER - Para mim, até hoje o único impacto real e comprovado é o dos biocombustíveis norte-americanos à base de milho, que desde o início de 2007 provocaram um verdadeiro choque no México, quando o preço da tortilha teve um aumento de 50%.
Mas, se continuarmos com essa política insensata de queimar cereais ou oleaginosos em nossos motores, esse erro inicial dos agrocombustíveis de primeira geração vai de fato converter-se em crime.
FOLHA - E o álcool produzido no Brasil?
PARMENTIER - Existe uma diferença essencial: no Brasil vocês já estão de certo modo nos biocombustíveis de segunda geração, ou seja, feitos a partir da planta inteira, a biomassa -logo, não a partir do grão. Me parece que vocês estão indicando o caminho a seguir, e, é claro, sua produtividade é bem melhor que a nossa. Em contrapartida, observo que o Brasil, grande país agrícola, fortemente exportador, não consegue alimentar corretamente sua própria população.
O Brasil terá que resolver essa contradição: alimenta países muito distantes, enche muitos tanques de combustível, mas ainda há milhões de brasileiros que têm fome.
FOLHA - Um acordo na Rodada Doha poderia ajudar a resolver o problema, ao facilitar as relações comerciais?
PARMENTIER - Nesse ponto, sou radical: o fato de a responsabilidade pela agricultura e a alimentação mundial ter sido tirada da FAO (Organização da ONU para Alimentação e Agricultura) para ser confiada a uma assembléia de comerciantes, a OMC, é um erro histórico. Esta crise nos permite ver muito bem que os comerciantes são totalmente incapazes de resolver o problema da fome no mundo. Acreditar que comerciantes vão levar a povoados no fim do mundo produtos agrícolas que pesam muito, que apodrecem facilmente, para dá-los a pessoas que não têm dinheiro, é uma fraude intelectual.
Não se pode alimentar a humanidade com os excedentes de produção de alguns países. Se o Brasil pode alimentar 50, 100 ou 150 milhões de pessoas além de sua própria população, tanto melhor -é um serviço verdadeiro que prestará à humanidade, e será bom para ele, que, de passagem, se enriquecerá. Mas estamos falando hoje em 850 milhões de pessoas que passam fome, e muito provavelmente de outros 50, 100 ou 150 milhões a mais até o final de 2008, sendo que a população mundial aumenta em 80 milhões de pessoas a cada ano.
Não compreendo como pessoas que raciocinam possam imaginar que esse comércio vá evitar as revoltas provocadas pela fome. Vejam o primeiro reflexo da ação dos grandes países exportadores de arroz que fecharam suas fronteiras e proibiram as exportações, para garantir a alimentação de suas próprias populações. No século 21, depender de outros países para se alimentar é fazer uma aposta num futuro extremamente perigoso.
É preciso reavaliar por completo a organização da agricultura mundial. Não há nada mais urgente que fechar as fronteiras, e organizar, nos países que têm fome, a mesma política que deu certo nos grandes países povoados que conseguiram se alimentar, como Estados Unidos, Europa e China: fechar as fronteiras para proteger sua agricultura e dar apoio maciço a seu desenvolvimento. Mas isso não deve preocupar o Brasil: ele ainda terá por muito tempo compradores para seus produtos, pois vamos viver um período prolongado de penúria.
FOLHA - Quais são as maiores ameaças à segurança alimentar?
PARMENTIER - Estamos chegando aos limites dos recursos do planeta, tudo o que antes era abundante se torna limitado. É preciso saber produzir com menos e parar de degradar o clima. O outro desafio é o de encontrar políticas de desenvolvimento da agricultura numa grande parte do planeta onde pura e simplesmente se parou de dar trabalho a camponeses.
FOLHA - Os subsídios dos países ricos a seus produtores contribuem para a alta dos preços de alimentos, como diz o presidente Lula?
PARMENTIER - Não creio que as subvenções agrícolas realmente causem a insegurança alimentar. O problema é que apenas os países ricos têm condições de pagar uma verdadeira segurança alimentar. Mas pensar que os países mais pobres conseguirão exportar sua produção agrícola à Europa e aos Estados Unidos se todas as fronteiras forem abertas me parece um engodo intelectual: eles não têm excedentes, e, quando produzem, sua produtividade é muito menor. A solução é exatamente o inverso: é preciso generalizar a proteção da agricultura produtora de alimentos e a subvenção a essa agricultura.
FOLHA - Estamos nos dirigindo a uma mudança nos hábitos alimentares mundiais?
PARMENTIER - Com certeza. É urgente acelerar o processo de transição alimentar. Dos 6,655 bilhões de habitantes do planeta, 887 milhões são subnutridos e 1,12 bilhão têm excesso de peso. Isso faz sentido? É preciso que os ricos comam menos carne e açúcar, mas também que centenas de milhões de pobres possam comer carne e açúcar de vez em quando. Produziremos mais, em total, no planeta, mas a divisão do que se produz acabará sendo melhor para a saúde de todos. Isso é de nosso interesse coletivo, é claro.
Mas, além dessa mudança de hábitos alimentares, é preciso parar de desperdiçar. Como é possível que cause alegria em seu país, por exemplo, a abertura de restaurantes em que se paga um preço fixo ao entrar e a comida é ilimitada? Isso é provavelmente algo que tem suas raízes na cultura brasileira, mas que não corresponde de modo algum às exigências e aos desafios do século 21.
Tradução de CLARA ALLAIN
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