terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

É hora de fazer alguma coisa

É hora de fazer alguma coisa

Reflexões do companheiro Fidel

Vou contar um pouco de história.

Quando os espanhóis “nos descobriram”, há cinco séculos, o número estimado da população da Ilha não ultrapassava os 200 mil habitantes, os quais viviam em equilíbrio com a natureza. Suas fontes principais de alimentos procediam dos rios, lagos e mares ricos em proteínas; adicionalmente praticavam uma agricultura rudimentar que lhes fornecia calorias, vitaminas, sais minerais e fibras.

Nalgumas regiões de Cuba ainda existia o hábito de produzir casabe, um tipo de pão elaborado com mandioca. Determinados frutos e pequenos animais silvestres complementavam sua dieta. Fabricavam alguma bebida com produtos fermentados e transmitiram à cultura mundial o costume de fumar, muito daninho para a saúde.

A população atual de Cuba é, possivelmente, 60 vezes maior do que a existente naquela altura. Embora os espanhóis se misturassem com a população autóctone, a exterminaram praticamente com o trabalho semi-escravo no campo e com a procura de ouro nas areias dos rios.

A população indígena foi substituída pela importação de africanos, capturados à força e escravizados, uma prática cruel que foi aplicada durante séculos.

De muita importância para nossa existência foram os hábitos alimentares criados. Fomos convertidos em consumidores de carne suína, bovina, ovina, leite, queijo e outros derivados; trigo aveia, cevada, arroz, grão-de-bico, feijão, ervilha e outras leguminosas procedentes de climas diferentes.

Originariamente, dispunhamos do milho, e foi introduzida a cana-de-açúcar entre as plantas mais ricas em calorias.

O café foi trazido pelos conquistadores da África; o cacau possivelmente foi trazido do México. Estes dois produtos, juntamente com o açúcar, o fumo e outros produtos tropicais, viraram enormes fontes de recursos para a metrópole, depois do levante dos escravos no Haiti, ocorrido no início do século XIX.

O sistema de produção escravista perdurou até a transferência da soberania de Cuba para os Estados Unidos pelo colonialismo espanhol que, em guerra cruenta e extraordinária, foi derrotado pelos cubanos.

Quando a Revolução triunfou, em 1959, nossa Ilha era uma verdadeira colônia ianque. Os Estados Unidos enganaram e desarmaram nosso Exército Libertador. Não se podia falar duma agricultura desenvolvida, mas sim de imensas plantações, exploradas com o trabalho manual e animal que, em geral, não utilizavam fertilizantes nem maquinarias. As grandes usinas de açúcar eram de propriedade norte-americana. Várias delas tinham mais de cem hectares de terra; outras dezenas de milhares. No total eram mais de 150 usinas açucareiras, incluídas as dos cubanos, que trabalhavam menos de quatro meses cada ano.

Os Estados Unidos receberam os fornecimentos açucareiros de Cuba nas duas grandes guerras mundiais, e tinham concedido a nosso país uma cota de venda nos seus mercados, associada a compromissos comerciais e a limitações da nossa produção agrícola, apesar de que o açúcar era, em parte, produzida por eles. Outros setores decisivos da economia, como os portos e refinarias de petróleo, eram propriedade norte-americana. Suas empresas possuiam grandes bancos, centros industriais, jazidas, cais, linhas marítimas e ferrovias, além de serviços públicos tão vitais como os elétricos e telefônicos.

Para aqueles que desejem entender não é necessário nada mais.

Apesar de que as necessidades de produção de arroz, milho, óleo, sementes e outros alimentos era importante, os Estados Unidos estabeleciam determinados limites a tudo o que concorresse com sua produção nacional, incluído o açúcar subsidiado de beterraba.

Logicamente, quanto à produção de alimentos é um fato real que dentro dos limites geográficos dum país pequeno, tropical, chuvoso e ciclônico, desprovido de maquinaria agrícola, de sistemas de barragens, de rega e do equipamento adequado, Cuba não podia dispor de recursos, nem estava em condições de concorrer com as produções mecanizadas de soja, girassol, milho, leguminosas e arroz dos Estados Unidos. Algumas delas, como o trigo e a cevada, não podiam ser produzidas em nosso país.

Certo é que a Revolução cubana não teve um minuto de paz. Apenas foi decretada a Reforma Agrária, antes de completar-se o quinto mês do triunfo revolucionário, começaram os planos e ações de sabotagem, incêndios, obstruções e emprego de meios químicos daninhos contra o país. Estes incluíram pragas contra produções vitais e, inclusive, contra a saúde humana.

Ao subestimar o nosso povo e sua decisão de lutar por seus direitos e sua independência, os EUA cometeram um erro.

É claro que nenhum de nós tinha, nesse então, a experiência atingida durante muitos anos; atuávamos a partir de ideias justas e de uma concepção revolucionária. Talvez o principal erro de idealismo cometido foi pensar que no mundo havia uma determinada quantidade de justiça e respeito ao direito dos povos quando, certamente, não existia. Contudo, disso não dependeria a decisão de lutar.

A primeira tarefa que ocupou nosso esforço foi a preparação para a luta que se aproximava.

A experiência adquirida na batalha heróica contra a tirania batistiana, é que o inimigo, qualquer que fosse sua força, não podia vencer o povo cubano.

A preparação do país para a luta virou esforço principal do povo, e nos levou a episódios tão decisivos como a batalha contra a invasão mercenária, promovida pelos Estados Unidos, em abril de 1961, desembarcada na Baía dos Porcos e escoltada pela infantaria de marinha e pela aviação ianques.

Incapaz de se resignar à independência e ao exercício dos direitos soberanos de Cuba, o governo desse país adotou a decisão de invadir nosso território. A URSS não teve absolutamente nada a ver com o triunfo da Revolução Cubana. Esta não assumiu o caráter socialista devido ao apoio da URSS, tudo o contrário: o apoio da URSS foi oferecido pelo caráter socialista da Revolução Cubana. De tal maneira que, apesar da URSS ter desaparecido, Cuba continua a ser socialista.

Por alguma via a URSS soube que Kennedy tentaria utilizar com Cuba o mesmo método que ela aplicou na Hungria. Isso levou aos erros que Jruschov cometeu, a respeito da crise dos mísseis, que fui obrigado a criticar. Mas Jruschov não só foi que errou, também Kennedy. Cuba não tinha nada a ver com a história da Hungria, nem a URSS teve nada a ver com a Revolução em Cuba. Esta foi fruto, apenas, da luta do nosso povo. Jruschov somente teve o gesto solidário de enviar armas a Cuba, quando foi ameaçada pela invasão mercenária que os Estados Unidos organizaram, treinaram, armaram e transportaram. Sem as armas enviadas a Cuba, nosso povo teria derrotado as forças mercenárias mesmo como derrotou o exército de Batista, ocupando-lhe todo o equipamento militar que possuia: 100 mil armas. Se a invasão direta dos Estados Unidos contra Cuba se tivesse produzido, nosso povo teria estado lutando até hoje contra seus soldados, que com certeza, também teriam que lutar contra milhões de latino-americanos. Os Estados Unidos teriam cometido o maior erro de sua história, e a URSS talvez ainda existiria.

Horas antes da invasão, depois do ataque arteiro a nossas bases aéreas, por aviões dos Estados Unidos que levavam bandeiras cubanas, foi declarado o caráter socialista da Revolução. O povo cubano combateu pelo socialismo, naquela batalha que ficou registrada na história como a primeira vitória contra o imperialismo na América.

Passaram dez presidentes dos Estados Unidos, está passando o undécimo, e a Revolução Socialista se mantém em pé. Também passaram todos os governos que foram cúmplices dos crimes dos Estados Unidos contra Cuba, e nossa Revolução se mantém em pé. A URSS desapareceu e a Revolução continuou adiante. Não se levou a cabo com permissão dos Estados Unidos, mas sim sob um bloqueio cruel e desapiedado; com ações terroristas que mataram ou feriram milhares de pessoas, cujos autores hoje desfrutam de total impunidade; enquanto lutadores antiterroristas cubanos são condenados à prisão perpetua; uma chamada Lei de Ajuste Cubano concede entrada, residência e emprego nos Estados Unidos. Cuba é o único país do mundo a cujos cidadãos é aplicado esse privilégio, negado aos do Haiti, depois do terremoto que matou mais de 300 mil pessoas, e ao resto dos cidadãos do hemisfério, aos que o império persegue e expulsa. Contudo, a Revolução cubana continua em pé.

Cuba é o único país do planeta que não pode ser visitado pelos cidadãos estadunidenses; mas Cuba existe e continua em pé, a só 90 milhas dos Estados Unidos, travando sua luta heróica.

Os revolucionários cubanos temos cometido erros e os seguiremos cometendo, porém jamais cometeremos o erro de ser traidores.

Jamais elegemos a ilegalidade, a mentira, a demagogia, o engano ao povo, a simulação, a hipocrisia, o oportunismo, o suborno, a ausência total de ética, os abusos de poder, inclusive o crime e as torturas nojentas, que com óbvias, embora sem dúvida meritórias exceções, têm caracterizado a conduta dos presidentes dos Estados Unidos.

Neste momento, a humanidade enfrenta problemas sérios e sem precedentes. O pior é que em grande parte as soluções dependerão dos países mais ricos e desenvolvidos, que chegarão a uma situação que realmente não estão em condições de enfrentar, sem que se derrube o mundo que estiveram tentando moldar a favor de seus interesses egoístas, e que inevitavelmente leva ao desastre.

Não estou falando de guerras, de cujos riscos e consequências já falaram pessoas sábias e brilhantes, incluídas muitas norte-americanas.

Estou falando de uma crise dos alimentos, causada por fatos econômicos e mudanças climáticas que, aparentemente, já são irreversíveis, em consequência da ação do homem mas, que de todas formas, a mente humana está no dever de enfrentar com urgência. Durante anos, que em realidade foi tempo perdido, se falou do assunto. Porém, o maior emissor de gases poluentes do mundo, Estados Unidos, se negava sistematicamente a levar em conta a opinião mundial. Deixando de lado o protocolo e outras bobagens habituais nos homens de Estado das sociedades de consumo, que quando têm acesso ao poder costumam ficar atordoados devido à influência da mídia, a realidade é que não prestaram atenção ao assunto. Um homem alcoolizado, cujos problemas eram conhecidos, e não preciso dizer o nome, impôs sua linha à comunidade internacional.

Os problemas ganharam força, agora, de súbito, mediante fenômenos que se estão repetindo em todos os continentes: muito calor, incêndios de florestas, perdas de colheitas na Rússia, com numerosas vítimas; mudança climática na China, chuvas excessivas ou secas; perdas progressivas das reservas de água no Himalaia, que ameaça a Índia, China, Paquistão e outros países; chuvas excessivas na Austrália, que alagaram quase um milhão de quilômetros quadrados; ondas de frio insólitas e fora de época na Europa, com afetações consideráveis à agricultura; secas no Canadá; ondas inusuais de frio nesse país e nos Estados Unidos; chuvas sem precedentes na Colômbia, que afetaram milhões de hectares de culturas; precipitações jamais vistas na Venezuela; catástrofes por excessivas chuvas nas megacidades do Brasil e secas no sul. Praticamente, não existe região no mundo onde estes fatos não tenham acontecido.

As produções de trigo, soja, milho, arroz e outros cereais e leguminosas, que constituem a base alimentar do mundo — cuja população atinge hoje, segundo cálculos, quase 6,9 bilhões de habitantes, já se aproxima da cifra inédita de 7 bilhões, e onde mais de 1 bilhão sofre fome e desnutrição — estão sendo afetadas seriamente pelas mudanças climáticas, criando um problema grave no mundo. Quando as reservas não foram recuperadas totalmente, ou só em parte para alguns tópicos, uma grave ameaça está criando problemas e desestabilização em numerosos estados.

Mais de 80 países, todos eles do Terceiro Mundo, com dificuldades reais, são ameaçados pela fome.

Apenas vou citar estas declarações e relatórios, de maneira sintetizada, que estão sendo publicados nos últimos dias:

“A ONU adverte do risco de uma nova crise alimentar.

“11 de janeiro de 2011 (AFP).

“Estamos perante uma situação muito tensa...”Coincidiu a FAO.

“Uns 80 países enfrentam um déficit de alimentos...”

“O índice global dos preços dos produtos agropecuários de base (cereais, carne, açúcar, oleaginosas, lacticínios) situa-se atualmente em seu nível máximo desde que a FAO começou a elaborar esse índice, há 20 anos”.

“Nações Unidas, janeiro (IPS)”.

“A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), com sede em Roma, alertou, na semana passada, que os preços mundiais do arroz, do trigo, do açúcar, da cevada e da carne (...) aumentarão significativamente em 2011...”

“Paris, 10 de janeiro (Reuters).— O presidente da França, Nicolas Sarkozy, apresentará esta semana, em Washington, sua campanha para enfrentar os altos preços globais dos alimentos...”

“Basileia, Suíça, 10 de janeiro (EFE).— O presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean Claude Trichet, porta-voz dos governadores dos bancos centrais do G-10, alertou hoje sobre a o aumento do preço dos alimentos e sobre a amaeaça de inflação nas economias emergentes”.

“Banco mundial teme uma crise no preço dos alimentos, 15 de janeiro (BBC)”.

“O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, informou à BBC que a crise seria mais profunda do que a de 2008”.

“México DF, 7 de janeiro (Reuters)”.

“Em novembro, o ritmo anual da inflação dos alimentos triplicou no México, em comparação com os dois meses anteriores...”

“Washington, 18 de janeiro (EFE)”.

“Segundo um estudo realizado, a mudança climática agravaria a falta de alimentos,”.

“Há mais de 20 anos, os cientistas alertaram sobre o impacto da mudança climática, mas nada mudou, a não ser o aumento das emissões que provocam o aquecimento global”, disse à Efe Liliana Hisas, diretora executiva da filial estadunidense desta organização.

Osvaldo Canziani, Prêmio Nobel da Paz em 2007 e assessor científico do relatório, indicou que “no mundo todo serão registrados fenômenos meteorológicos e condições climáticas extremas, e o aumento da temperatura média superficial incrementará a intensidade desses fenômenos”.

“(Reuters), 18 de janeiro.— A Argélia compra trigo para evitar escassez e distúrbios”.

“A agência estatal de grãos da Argélia comprou por volta de 1 milhão de toneladas de trigo, nas últimas duas semanas, para evitar a escassez, caso houverem distúrbios”, disse à Reuters uma fonte do Ministério da Agricultura.

“(Reuters), 18 de janeiro.— O preço do trigo aumenta em Chicago, após compras da Argélia”.

“O Economista, 18 de janeiro de 2011”.

“Alerta mundial devido ao preço dos alimentos”.

“Entre as principais causas estão as enchentes e as secas provocadas pela mudança climática, o uso de alimentos para produzir combustívéis e a especulação no preço dos commodities”.

Os problemas são dramaticamente sérios. Contudo, nem tudo está perdido.

A produção atual de trigo calculada atingiu a cifra de quase 650 milhões de toneladas.

A produção de milho ultrapassa essa quantidade e se aproxima dos 770 milhões de toneladas.

A soja poderia aproximar-se dos 260 milhões, dos quais os Estados Unidos calculam 92 milhões e o Brasil, 77. São os dois maiores produtores.

De maneira geral, os dados de gramineas e leguminosas disponíveis em 2011 são conhecidos.

O primeiro assunto a resolver pela comunidade mundial seria selecionar entre alimentos e biocombustíveis. O Brasil, um país em desenvolvimento, com certeza, deveria ser compensado.

Se os milhões de toneladas de soja e milho que serão investidos em biocombustíveis fossem destinados à produção de alimentos, o aumento inusitado dos preços poderia parar, e os cientistas do mundo poderiam propôr fórmulas que, de alguma maneira, possam deter e inclusive, reverter a situação.

Perdeu-se muito tempo. É hora de fazer alguma coisa.

Fidel Castro Ruz
19 de janeiro de 2011
21h55

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