Chico Menezes: "O filme Garapa vai provocar um debate fundamental sobre a fome"
Entrevista Francisco Menezes - Ibase
Como se deu o envolvimento do Ibase com Garapa?
Na ocasião do lançamento de Ônibus 174, José Padilha foi ao Ibase já com a intenção de realizar um documentário sobre a fome no Brasil. Percebi nele uma grande sensibilidade social. Padilha deixou comigo alguns filmes que me impressionaram não só pela qualidade cinematográfica - dentro do que eu conseguia entender -, mas também por refletirem uma grande preocupação de se compreender a realidade a fundo. Conversamos muito sobre a questão da fome. Eu tinha trabalhado bastante com o tema da insegurança alimentar no Nordeste do Brasil, e Padilha me perguntou onde ele poderia realizar esse documentário. O Ceará, de onde eu tinha voltado há pouco, imediatamente se tornou uma possibilidade. Passei os contatos que tínhamos no estado e logo ele planejou a viagem. Padilha voltou com uma sensibilidade ainda mais aflorada - ele não tinha apenas presenciado aquela realidade, ele a tinha vivido. Na volta, falou sobre as dificuldades de se manter minimamente isento. Contou, por exemplo, que estava filmando uma determinada situação em que as crianças estavam sem merenda na escola por questões burocráticas - era uma situação arbitrária do poder público, difícil de suportar, e o Padilha acabou se envolvendo numa discussão em relação à prefeitura, porque não aceitava a intransigência que levava à situação. Também discutimos muito aspectos conceituais sobre o que precisava ser mostrado, como, por exemplo, a necessidade de se mostrar a realidade rural e a urbana. No Brasil, muitas vezes as pessoas muito pobres saem do campo e vêm para a cidade como uma forma desesperada de melhoria. O filme mostra essas pessoas, que na cidade também encontram uma situação fechada para elas.
Como foi, especificamente, o trabalho de conceituação do filme?
Foi um aprendizado em conjunto. Fomos construindo em parceria a concepção dessa calamidade que é a fome para o filme. É uma compreensão que não se limita à situação de desnutrição, ao aspecto biológico. Uma pessoa que acorda de manhã e não sabe se ela e sua família terão alimento naquele dia não vai abandonar essa lembrança se algum dia tiver condição de deixar de experimentar esse sofrimento. Hoje temos muita clareza disso: pessoas que vivenciaram a situação da fome carregam isso para o resto da vida. É um medo que se faz presente para sempre. E esse dado deve ser considerado na própria preparação das políticas públicas voltadas para esse grupo. Fome todos nós sentimos, mas sabemos que vamos poder saciá-la de imediato. Essa, porém, não é a realidade das pessoas em situação de pobreza extrema.
O senhor acompanhou o processo de montagem do filme?
Sim, vi o filme muitas vezes, em várias versões. O filme fala da fome como situação extrema, fala de pessoas que não têm o mais essencial para viver. Falta tudo, e, no fim das contas, falta o alimento. Nesse aspecto, Garapa deixa escancarada a situação da fome, mas também levanta uma série de outros aspectos importantes, como, por exemplo, a questão do gênero. Sem fazer um julgamento sobre os homens, o documentário mostra claramente como a mulher se torna uma absoluta guerreira em situações de adversidade extrema. As três mulheres mostradas no filme deixam isso muito nítido. Ali você tem guerreiras defendendo a vida a partir da vida dos filhos. Os homens, quando fracassam na situação de provedores, um papel que a sociedade lhes atribui, se tornam pessoas dependentes - um novo problema. Acho que o filme vai desencadear muitas discussões acerca desse fato. Não temos que omitir esse fato nem julgar essas pessoas. É uma realidade que vejo como uma reação diante dos papéis que lhe s são atribuídos.
Com o filme pronto, qual o aspecto que o senhor considerou mais importante?
Acredito que é revelar a invisibilidade dessas pessoas, colocar o foco sobre pessoas que nós sabemos que existem, mas que, no dia-a-dia, desaparecem. Elas perambulam, no campo ou na cidade, em busca da sobrevivência, mas nem mesmo as políticas públicas conseguem encontrá-las. Nós demos passos importantes, nos últimos anos, no sentido de pelo menos prover essas pessoas de documento, de carteira de identidade. O filme mostra isso: uma das personagens está sem documento, o que a impede de conseguir uma série de coisas. O Estado simplesmente não consegue acolher essas pessoas que vivem em um grau de fragilidade extrema. Garapa chega às pessoas que estão fora do alcance do Estado e fala das estratégias de quem acorda de manhã e não sabe se vai poder comer naquele dia. O consumo da garapa, por exemplo, faz parte dessa estratégia, porque pelo menos ajuda a manter a família em pé, com o menor custo. Em muitas situações, o indivíduo consegue acesso a alguma renda e compra comida, mas essa comida será suficiente apenas até determinado dia do mês. Depois, ele compra muito açúcar para misturar com água. Isso é parte de uma estratégia de sobrevivência que implica viver até o próximo dia e ir se arrastando até onde der, mas que, evidentemente, traz danos para a saúde.
Um dos pontos mais polêmicos abordados em Garapa é o do planejamento familiar. Como o senhor vê essa questão?
É duro tentarmos impor de fora soluções que não se colocam para essas pessoas. É algo muito arbitrário. O planejamento familiar é necessário, mas é preciso haver a vontade dessas pessoas de exercer esse planejamento, se não ele se torna uma violência contra elas mesmas, que estão dentro de uma lógica que não é necessariamente a nossa. O filme mostra isso de maneira cabal. Não cabe ao filme dizer - e ele não faz isso - se é de uma maneira ou de outra que se deve prevenir filhos. Essa questão existe, ela está em todo Brasil, e percebemos que se trata de uma lógica diferente, e que não será possível resolver essa questão com qualquer tipo de imposição. Antes de tudo, é preciso fazer um movimento forte de garantias essenciais, onde o direito à alimentação, que é um direito à própria vida, é primordial, para depois se conversar sobre planejamento familiar - ou então estaremos invertendo a ordem das coisas.
Como é a trajetória do senhor no Ibase?
Betinho ( o sociólogo Herbert de Souza) fundou o Ibase junto com outros dois companheiros que vieram do exílio em 1981. Quando voltou, Betinho trouxe a questão da cidadania de uma maneira vigorosa. Estou no Ibase desde 1989 e, quando cheguei lá, o instituto ainda era muito jovem. Já havia trabalhado com a questão de agricultura e entrei para o departamento voltado para esse campo. Daí, fiz a transição para a questão da alimentação, que é muito mais ampla. Primeiro assisti à campanha contra fome, em que o próprio Betinho teve uma participação importante. Nessa oportunidade, discutimos muitas idéias. Depois, após a morte do Betinho, aprofundamos a questão da insegurança alimentar. Temos problemas com alimentação em vários graus, embora os grupos mais carentes, evidentemente, exijam uma atenção mais imediata. O Betinho e, antes dele, Josué de Castro diziam que a questão da insegurança alimentar extrema não é uma fatalidade, mas obra dos próprios homens e de suas políticas. A gen te acredita muito nisso e busca transformar essas políticas. Em 2004, fui convidado pelo presidente Lula para presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e passei três anos à frente do conselho, que é um órgão onde governo e sociedade elaboram, juntos, propostas de políticas públicas. Pela primeira vez aprovamos uma lei orgânica de insegurança alimentar, constituindo um sistema unificado - assim como existe o sistema único de saúde ou sistema único de assistência social. O Brasil está dando passos muito importantes e, inclusive, tem sido utilizado como exemplo para outros países, provavelmente por causa do enorme desafio que a gente tem, e que o Garapa mostra radicalmente. Garapa é um acontecimento forte nessa minha trajetória. O cinema traz a oportunidade de mostrar essa realidade para um público muito mais amplo. Fazer as pessoas discutirem o assunto é muito importante, as coisas se constroem a partir do momento em que você consegue despertar daquele sono em que não mais se incomoda com nada. O filme vai gerar discussão, seja dos que gostam dele, seja dos que digam que ele poderia ter sido feito de outras formas - o importante é que a discussão vai surgir. E esse debate é fundamental.
Fonte: Produtora Zazen
Assessoria de Comunicação
(61) 3411.3349 / 2747
www.presidencia.gov.br/consea
ascom@consea.planalto.gov.br
Entrevista Francisco Menezes - Ibase
Como se deu o envolvimento do Ibase com Garapa?
Na ocasião do lançamento de Ônibus 174, José Padilha foi ao Ibase já com a intenção de realizar um documentário sobre a fome no Brasil. Percebi nele uma grande sensibilidade social. Padilha deixou comigo alguns filmes que me impressionaram não só pela qualidade cinematográfica - dentro do que eu conseguia entender -, mas também por refletirem uma grande preocupação de se compreender a realidade a fundo. Conversamos muito sobre a questão da fome. Eu tinha trabalhado bastante com o tema da insegurança alimentar no Nordeste do Brasil, e Padilha me perguntou onde ele poderia realizar esse documentário. O Ceará, de onde eu tinha voltado há pouco, imediatamente se tornou uma possibilidade. Passei os contatos que tínhamos no estado e logo ele planejou a viagem. Padilha voltou com uma sensibilidade ainda mais aflorada - ele não tinha apenas presenciado aquela realidade, ele a tinha vivido. Na volta, falou sobre as dificuldades de se manter minimamente isento. Contou, por exemplo, que estava filmando uma determinada situação em que as crianças estavam sem merenda na escola por questões burocráticas - era uma situação arbitrária do poder público, difícil de suportar, e o Padilha acabou se envolvendo numa discussão em relação à prefeitura, porque não aceitava a intransigência que levava à situação. Também discutimos muito aspectos conceituais sobre o que precisava ser mostrado, como, por exemplo, a necessidade de se mostrar a realidade rural e a urbana. No Brasil, muitas vezes as pessoas muito pobres saem do campo e vêm para a cidade como uma forma desesperada de melhoria. O filme mostra essas pessoas, que na cidade também encontram uma situação fechada para elas.
Como foi, especificamente, o trabalho de conceituação do filme?
Foi um aprendizado em conjunto. Fomos construindo em parceria a concepção dessa calamidade que é a fome para o filme. É uma compreensão que não se limita à situação de desnutrição, ao aspecto biológico. Uma pessoa que acorda de manhã e não sabe se ela e sua família terão alimento naquele dia não vai abandonar essa lembrança se algum dia tiver condição de deixar de experimentar esse sofrimento. Hoje temos muita clareza disso: pessoas que vivenciaram a situação da fome carregam isso para o resto da vida. É um medo que se faz presente para sempre. E esse dado deve ser considerado na própria preparação das políticas públicas voltadas para esse grupo. Fome todos nós sentimos, mas sabemos que vamos poder saciá-la de imediato. Essa, porém, não é a realidade das pessoas em situação de pobreza extrema.
O senhor acompanhou o processo de montagem do filme?
Sim, vi o filme muitas vezes, em várias versões. O filme fala da fome como situação extrema, fala de pessoas que não têm o mais essencial para viver. Falta tudo, e, no fim das contas, falta o alimento. Nesse aspecto, Garapa deixa escancarada a situação da fome, mas também levanta uma série de outros aspectos importantes, como, por exemplo, a questão do gênero. Sem fazer um julgamento sobre os homens, o documentário mostra claramente como a mulher se torna uma absoluta guerreira em situações de adversidade extrema. As três mulheres mostradas no filme deixam isso muito nítido. Ali você tem guerreiras defendendo a vida a partir da vida dos filhos. Os homens, quando fracassam na situação de provedores, um papel que a sociedade lhes atribui, se tornam pessoas dependentes - um novo problema. Acho que o filme vai desencadear muitas discussões acerca desse fato. Não temos que omitir esse fato nem julgar essas pessoas. É uma realidade que vejo como uma reação diante dos papéis que lhe s são atribuídos.
Com o filme pronto, qual o aspecto que o senhor considerou mais importante?
Acredito que é revelar a invisibilidade dessas pessoas, colocar o foco sobre pessoas que nós sabemos que existem, mas que, no dia-a-dia, desaparecem. Elas perambulam, no campo ou na cidade, em busca da sobrevivência, mas nem mesmo as políticas públicas conseguem encontrá-las. Nós demos passos importantes, nos últimos anos, no sentido de pelo menos prover essas pessoas de documento, de carteira de identidade. O filme mostra isso: uma das personagens está sem documento, o que a impede de conseguir uma série de coisas. O Estado simplesmente não consegue acolher essas pessoas que vivem em um grau de fragilidade extrema. Garapa chega às pessoas que estão fora do alcance do Estado e fala das estratégias de quem acorda de manhã e não sabe se vai poder comer naquele dia. O consumo da garapa, por exemplo, faz parte dessa estratégia, porque pelo menos ajuda a manter a família em pé, com o menor custo. Em muitas situações, o indivíduo consegue acesso a alguma renda e compra comida, mas essa comida será suficiente apenas até determinado dia do mês. Depois, ele compra muito açúcar para misturar com água. Isso é parte de uma estratégia de sobrevivência que implica viver até o próximo dia e ir se arrastando até onde der, mas que, evidentemente, traz danos para a saúde.
Um dos pontos mais polêmicos abordados em Garapa é o do planejamento familiar. Como o senhor vê essa questão?
É duro tentarmos impor de fora soluções que não se colocam para essas pessoas. É algo muito arbitrário. O planejamento familiar é necessário, mas é preciso haver a vontade dessas pessoas de exercer esse planejamento, se não ele se torna uma violência contra elas mesmas, que estão dentro de uma lógica que não é necessariamente a nossa. O filme mostra isso de maneira cabal. Não cabe ao filme dizer - e ele não faz isso - se é de uma maneira ou de outra que se deve prevenir filhos. Essa questão existe, ela está em todo Brasil, e percebemos que se trata de uma lógica diferente, e que não será possível resolver essa questão com qualquer tipo de imposição. Antes de tudo, é preciso fazer um movimento forte de garantias essenciais, onde o direito à alimentação, que é um direito à própria vida, é primordial, para depois se conversar sobre planejamento familiar - ou então estaremos invertendo a ordem das coisas.
Como é a trajetória do senhor no Ibase?
Betinho ( o sociólogo Herbert de Souza) fundou o Ibase junto com outros dois companheiros que vieram do exílio em 1981. Quando voltou, Betinho trouxe a questão da cidadania de uma maneira vigorosa. Estou no Ibase desde 1989 e, quando cheguei lá, o instituto ainda era muito jovem. Já havia trabalhado com a questão de agricultura e entrei para o departamento voltado para esse campo. Daí, fiz a transição para a questão da alimentação, que é muito mais ampla. Primeiro assisti à campanha contra fome, em que o próprio Betinho teve uma participação importante. Nessa oportunidade, discutimos muitas idéias. Depois, após a morte do Betinho, aprofundamos a questão da insegurança alimentar. Temos problemas com alimentação em vários graus, embora os grupos mais carentes, evidentemente, exijam uma atenção mais imediata. O Betinho e, antes dele, Josué de Castro diziam que a questão da insegurança alimentar extrema não é uma fatalidade, mas obra dos próprios homens e de suas políticas. A gen te acredita muito nisso e busca transformar essas políticas. Em 2004, fui convidado pelo presidente Lula para presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e passei três anos à frente do conselho, que é um órgão onde governo e sociedade elaboram, juntos, propostas de políticas públicas. Pela primeira vez aprovamos uma lei orgânica de insegurança alimentar, constituindo um sistema unificado - assim como existe o sistema único de saúde ou sistema único de assistência social. O Brasil está dando passos muito importantes e, inclusive, tem sido utilizado como exemplo para outros países, provavelmente por causa do enorme desafio que a gente tem, e que o Garapa mostra radicalmente. Garapa é um acontecimento forte nessa minha trajetória. O cinema traz a oportunidade de mostrar essa realidade para um público muito mais amplo. Fazer as pessoas discutirem o assunto é muito importante, as coisas se constroem a partir do momento em que você consegue despertar daquele sono em que não mais se incomoda com nada. O filme vai gerar discussão, seja dos que gostam dele, seja dos que digam que ele poderia ter sido feito de outras formas - o importante é que a discussão vai surgir. E esse debate é fundamental.
Fonte: Produtora Zazen
Assessoria de Comunicação
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