terça-feira, 27 de novembro de 2007

Ciência e Filosofia

A utilidade é mãe da filosofia, o ócio é o pai da ciência

A ciência progride pela utilidade, a filosofia por meio do ócio. Este é o senso comum que dirige a mentalidade de nossos gestores do conhecimento. Reitores de universidades, dirigentes de órgãos de fomento à pesquisa, ministros e secretários de instâncias governamentais ligadas à educação e à ciência – a maioria pensa assim. Mas não conseguem me convencer disso. Penso exatamente o oposto. A filosofia só tem sentido pela utilidade, a ciência, pelo ócio.

A chamada ciência aplicada e dirigida a propósitos determinados não é um empreendimento desprezível, mas não é propriamente ela a responsável pelos melhores descobrimentos e invenções. Estatisticamente é possível ver que aquilo que mais se vende em farmácias e drogarias, e que consideramos avanço em nossas vidas, não veio senão como subproduto de determinadas pesquisas. Erro, fuga de direção e, principalmente, lazer foram os elementos que determinaram nosso avanço científico. É verdade para o mundo, é verdade para o Brasil. Cada vez mais os cientistas precisam ser colocados em laboratórios em que a direção das pesquisas permite o desvio de conduta, ou seja, o ócio e até mesmo a “desobediência civil” laboratorial. Ninguém cria o que se propõe a criar – esta é a história da ciência.

Ao contrário da ciência, a filosofia não gera absolutamente nada de interessante ou belo ou agradável ou bom em regime de férias. Não é errado dizer que a filosofia tem a ver, ainda, com a literatura e quando afastada da boemia vira um arremedo de ciência. Mas a boemia necessária à filosofia precisa de disciplina, pulso firme, determinação da vontade. E, mais que tudo isso, a filosofia é uma atividade que só chega a algum lugar se este lugar é determinado previamente. A história da filosofia mostra isso: as grandes obras filosóficas, que são o equivalente, neste campo, às grandes invenções científicas, não se fizeram por meio de alguém que se propôs a escrever algo que não sabia o que era. Nada disso. As grandes obras filosóficas foram produtos de pessoas que tinham planos, objetivos e direções bem estabelecidas. Nunca existiu ócio na filosofia. Nem mesmo os filósofos que jamais escreveram algo, e que advogaram a idéia da filosofia como o que se exerce no cotidiano (como os cínicos, por exemplo, ou mesmo, de certo modo, Sócrates), imaginaram em chegar a algum lugar no filosofar sem um plano detalhado.

A filosofia é filha da utilidade. A ciência tem como pai o ócio. O cientista contemplativo precisa de laboratório. Mas não é nele que faz o que deve fazer. São nas horas de lazer que encontra suas melhores idéias e traça seus modelos mais abrangentes. O cientista precisa se afastar do laboratório e, então, ficar com saudades dele. É na saudade do laboratório, no cultivo do ócio, que o cientista dá ao cérebro tudo que ele precisa para fazer o que não deve fazer e, então, fazer o certo. A filosofia, ao contrário, ou se exerce no diálogo cotidiano, sem parar, sem descanso, ou não se faz. Não existe em filosofia o pensador solitário, que descansa e, então, tem idéias. Nada disso. A filosofia acontece no diálogo, na escrita, no debate; ou seja, ela faz o seu melhor no momento em que se faz. Não há idéias prévias em filosofia. Quando há a idéia, é a filosofia acontecendo. Por isso, colocada sob a regra do ócio, não ocorre.

Todos os grandes cientistas trabalharam em situações mais cômodas que os filósofos. Quando lhes tiraram tais situações, perderam a criatividade. Todos os grandes filósofos só produziram sob pressão e sob problemas particulares e políticos inauditos. Cientistas em prisões se desesperam e perdem a criatividade. Filósofos em prisões nos deram maravilhas. A ciência precisa de calma de espírito e segurança, a filosofia precisa de agitação interior e pavor. Thomas Edison, se preso, seria medíocre. Jamais seria um Boécio que, preso, nos deixou a maravilhosa Consolação da filosofia. Os cientistas alemães, quando viram os exércitos inimigos se aproximarem, perderam as idéias e a concentração. Santo Agostinho, quando os bárbaros já estavam no horizonte de sua terra, escreveu A cidade de Deus.

Quando a II Guerra Mundial estava para terminar, soviéticos e americanos aceleraram o passo para entrar em Berlim. Quem chegasse primeiro não iria só recolher os souvenirs mais valiosos, mas iria, sim, levar para casa os melhores cientistas. Os cientistas alemães estavam preocupados somente com uma coisa (mesmo os que haviam tido simpatias com o comunismo, no passado): ir para os Estados Unidos, fugir para encontrar a “frente americana”. Não era amor pela América, era necessidade, pois só na América teriam condições para fazer o que gostavam de fazer. Nos Estados Unidos, eles sabiam, haveria maior liberdade para atuarem em projetos de gosto pessoal. E mesmo em projetos governamentais, poderiam ter o ócio pedido para a ciência. Nos vários diálogos que existem sobre o assunto, há registros dessa busca do ócio em favor da própria atividade científica. Mas isso ocorreu com os filósofos?

Não! Os filósofos se dividiram segundo a ideologia e segundo a utilidade que teriam – ou que imaginavam que teriam. Os que haviam sido perseguidos por serem de esquerda estavam ou mortos ou já tinham fugido, é certo. Mas não pensem quem fugiram na primeira hora. Em alguns casos, queriam ficar. Muitos, inclusive, se achavam úteis para qualquer regime, seja o soviético ou o nazista. A história da fuga dos intelectuais que ficaram na França e foram recolhidos por meio de agentes da esposa do presidente americano da época, mostra bem isso (há filmes sobre o assunto, bastante fiéis à história). Filósofos, escritores e outros intelectuais do tipo não queriam fugir para a América. Ele achavam a América um lugar inóspito. Queriam ficar na França, e alguns saíram da Alemanha convencidos que os nazistas não lhes fariam mal, pois se viam como úteis, e existiram os que imaginavam poder até serem mais úteis ainda se fossem pegos pela frente russa. Errados ou certos, eles tinham consciência da utilidade.

Quanto ao nazismo, eles erraram. Os que não fugiram de imediato, morreram. Mas quanto aos russos, eles não erraram. Uma vez na URSS, vários dos que optaram por encontrar a frente russa tiveram cargos importantes. Cargos de trabalho – escrever para o Partido.

A má filosofia tanto quanto a boa, se faz no trabalho. A boa ciência se faz no ócio. Há filósofos que foram escravos. Há cientistas que foram escravos? Caso os dirigentes entendam isso, poderão conversar melhor com os filósofos e traçar planos. As idéias filosóficas nascem de planos. As boas e as ruins. Agora, com a ciência, só há um plano possível, o da liberdade e o da condescendência para com o ócio do cientista.

A subversão filosófica, que é a filosofia autêntica, se faz com projetos. A continuidade da produção científica autêntica só se faz no jogo do azar e sorte. Quem tem formação dupla, nas ciências e na filosofia, sabe bem do que estou falando. Quando começarmos a entender isso, então estaremos, de fato, aptos para dar os primeiros passos para uma política educacional efetiva no Brasil. E então estaremos iniciando o engatinhar na política científica.

Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo.
pgjr23@yahoo.com.br

Ciência e Filosofia

0 Comments: