quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Entrevista - João Zinclar

O povo ribeirinho do São Francisco traduz as lutas populares do Brasil. Entrevista especial João Zinclar

Um fotógrafo operário. Assim se define João Zinclar que já foi metalúrgico e hoje vive da fotografia. O gaúcho, que hoje vive em Campinas-SP, durante seis anos percorreu as margens do
rio São Francisco e registrou a vida deste e de quem depende dele para viver. Assim nasceu o livro O Rio São Francisco e as Águas no Sertão (Campinas: sem editora, 2010). Em entrevista à IHU On-Line, realizada por email, Zinclar conta como foi esse processo de captação das imagens e convivência com o povo da região. “Percorremos a extensão do rio, que é de 2.700 quilômetros várias vezes, perfazendo mais de 15 mil quilômetros nesses seis anos”, descreve.

Nesse tempo, Zinclar acompanhou todo o processo de
transposição do rio São Francisco, desde as discussões sobre o projeto até o início das obras. “A natureza vem sendo constantemente privatizada, transformada em mercadoria. Esse processo não é novo, faz parte da natureza do capitalismo em todos os tempos. Hoje, o controle sobre a água indica um novo patamar dessa disputa. A transposição é parte dessa apropriação privada das riquezas comuns. A água é um bem comum, não há vida sem água e hoje uma parte considerável da humanidade não tem acesso a este recurso”, afirmou. Ao longo da entrevista é possível ver algumas das imagens que Zinclar publicou em seu livro.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como foi a viagem e a produção das imagens para conhecer as águas do sertão brasileiro?

João Zinclar – O trabalho que resultou no livro O Rio São Francisco e as Águas no Sertão lançado em novembro de 2010 em Campinas-SP tem durado seis (6) anos, desde janeiro de 2005 até os dias de hoje. É motivado pela questão política envolvendo a grande polêmica e os conflitos acerca da equivocada proposta do governo federal de efetivar as obras da
transposição das águas rio São Francisco para o chamado nordeste setentrional.

Por entender a questão da água como valor de luta estratégica para os trabalhadores e o povo, (a guerra pela água em Cochabamba na Bolívia no início do século é um exemplo disso), considerei que a fotografia poderia contribuir nessa polêmica sobre o futuro das
águas do velho Chico. Ajudar na divulgação e documentação das lutas populares de resistência ao projeto de transposição, mostrar a grave situação de degradação na vida do rio, para uma compreensão melhor no principal caso real e de relevância nacional sobre conflitos em torno da defesa, do uso e controle de águas no Brasil.



Percorremos a extensão do rio, que é de 2.700 quilômetros várias vezes, perfazendo mais de 15 mil quilômetros nesses seis anos. Nesse tempo, contarei e convivi com comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, sem terra, pescadores, trabalhadores rurais. Assim, fotografei e documentei suas lutas para defender o rio do veneno capitalista que contamina e usurpa suas águas, com suas mineradoras, barragens e monoculturas agroexportadoras que devastam criminosamente biomas importantes para a formação do São Francisco como o cerrado e a caatinga.

Além das margens do rio, também percorremos várias regiões por onde estão sendo construídos e passando os canais da transposição. Estivemos no Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, onde procuramos mostrar e abordar o sertão de outra forma, um sertão em tom azul, azul de água, com uma quantidade enorme estocadas em grandes, médios e pequenos açudes espalhados pelo sertão, construídos ao longo do último século em nome do “combate à seca”. Aí foi possível revelar uma das principais críticas ao
projeto de transposição: a de que a obra vai chover no molhado, vai levar água para onde já tem água, água essa que, se distribuída para o povo, seria suficiente para abastecer todos os usos, desfazendo o mito da falta dela no sertão.

Quero destacar que esse processo todo só foi possível com o importante apoio nas mais variadas formas de pessoas amigas, dos movimentos sociais, sindicatos, pastorais sociais, de profissionais jornalistas, tanto de Campinas-SP, como do povo da beira do rio e no sertão. Foi a solidariedade desse povo que me ajudou a compreender realidades distantes de nosso dia a dia e também entender melhor a luta de classes no Brasil. Antes de virar livro, essas fotos percorreram várias cidades da beira do rio, de outros estados e países e serviram para ilustrar reportagens e
debates sobre o rio São Francisco.

IHU On-Line – Você é um operário fotógrafo. Que diferenças o seu olhar de "operário" ressalta sobre o povo e a vida do rio São Francisco?

João Zinclar – A fotografia é paixão antiga. Hoje consigo sobreviver dela, como free-lancer, a serviço da luta operária e popular, mas minha profissão primeira é operário metalúrgico. Trabalhei no chão de fábrica durante muitos anos, fui dirigente sindical da categoria, onde forjei minha consciência de classe e visão socialista de mundo.

Não existe neutralidade jornalística nessa história. Portanto, a visão que conduz o livro é a de uma postura classista e anticapitalista e que a luta do povo ribeirinho em
defesa de sua sobrevivência, de seu trabalho e da qualidade da água de seu rio contribui, à sua maneira, no conflito mais geral contra o capital, no campo e na cidade, resistindo à nova fase do avanço predatório do capitalismo no campo brasileiro.

A diversidade das lutas dos povos que habitam o
velho Chico, com indígenas e quilombolas enfrentando o poder econômico em disputas para retomar terras, pescadores na defesa da pesca artesanal, sem terra em luta pela reforma agrária e outras manifestações, deveria ter a devida atenção dos trabalhadores urbanos e suas organizações políticas.



IHU On-Line – O Rio São Francisco passa por um momento de conflito em função das obras da transposição. O que você viu sobre as obras? O que você ouviu do povo sobre isso?

João Zinclar – Entre 2005 e 2008, vários movimentos sociais e pessoas se colocaram contrários ao projeto. Pessoas se mobilizaram com as greves de fome de Dom Luiz Cappio, com as ocupações de barragens e dos canteiros das obras da transposição. Vários protestos foram realizados, bem como denúncias de arbitrariedades aos direitos humanos e alertas sobre os impactos ambientais para iniciar a obra. O governo triturou tudo isso e as obras iniciaram e, hoje, estão em andamento.

Algumas lutas recentes (como greves de trabalhadores das empreiteiras por melhorias salariais e reclamações contra as
péssimas condições de trabalho) produziram uma redução nos ritmos das obras. Agora, as questões se colocam de outra maneira e nem por isso são menos importantes. A desinformação sobre o projeto e os impactos negativos sobre a vida das comunidades atingidas pela transposição na região receptora das águas do velho Chico é a regra. A máquina propagandística do governo é poderosa e isso tem enorme potencial desmobilizador. Os atingidos pelas obras da transposição têm tido grandes dificuldades em se articular. Reclamam dos valores recebidos e das compensações materiais pagas pelo governo, pois anos de trabalho não se contabilizam facilmente. Muitos deixam sua história de vida e seu trabalho em troca de valores irrisórios em sua tentativa de recomeçar tudo de novo em outras localidades, atingidas pela crescente valorização das terras em torno dos canais da transposição.



Há uma insatisfação grande com o enfraquecimento das economias locais e a destruição das bases de vida de pequenos agricultores. A oferta de emprego não cumpre o prometido: são temporários e poucos. As obras afetam os povos originários, que têm na terra um referencial cultural, de vida com outros valores, que não apenas econômicos, pois a construção do eixo norte devasta terras Trukás em Cabrobró-PE, e território Anacé no Ceará, o eixo leste ameaça território sagrado dos pipipã em Pernambuco.

Além disso, o debate em torno da
revitalização do rio continua atual, uma vez que as iniciativas do governo pouco realizaram nesse aspecto, mantendo o mesmo padrão de degradação do rio que afeta duramente da qualidade de vida dos ribeirinhos. A controvérsia e a oposição ao projeto de transposição continuam, essa é uma questão mal resolvida, que terá desdobramentos futuros, sustentada na insatisfação popular, quando perceberem a contradição, além de ser a água mais cara do Brasil, ás águas da transposição não são para servir ao povo do sertão, como diz o discurso do governo.

IHU On-Line – Qual a importância de registrar o São Francisco e as águas do sertão nesse momento atual em que vivemos?

João Zinclar – Sempre que pensamos no sertão nordestino vem em nossa cabeça a imagem dramática de seca, da caatinga retorcida, de vida difícil, quase inviável. A imagem cunhada por Euclides da Cunha de que “O sertanejo é antes de tudo um forte” ilustra essa ideia. Só um forte é capaz de conviver com isso. No entanto, olhando com outra abordagem também real, existe um sertão com bastante água. A questão é que esta água é colocada majoritariamente a serviço dos interesses do capital e suas oligarquias, a água é apropriada privadamente. O atual modelo de desenvolvimento na região, com o agronegócio à frente, se apropria das riquezas naturais, de forma radical, na medida em que novas frentes de negócios vão se abrindo. Essa é a questão central, em minha opinião.

A natureza vem sendo constantemente privatizada, transformada em mercadoria. Esse processo não é novo, faz parte da natureza do capitalismo em todos os tempos. Hoje o controle sobre a água indica um novo patamar dessa disputa. A
transposição é parte dessa apropriação privada das riquezas comuns. A água é um bem comum, não há vida sem água e hoje uma parte considerável da humanidade não tem acesso a este recurso. Eu posso escolher se compro um jeans novo ou não, um livro ou um celular, mas não posso optar por não consumir água. A transposição do São Francisco, a nova polêmica em torno da construção da Usina de Belo Monte, assim como a ocupação das margens dos rios e encostas, a proteção das nascentes são temas políticos, não apenas técnico e ambiental. A luta social dos povos atingidos por esse “desenvolvimento” precisa se articular num horizonte político mais amplo, capaz de resgatar o caráter de classe desse debate. Porque são as populações pobres e os trabalhadores que mais sofrem com os efeitos desse processo.



IHU On-Line – O que suas imagens revelam sobre a Alma do Velho Chico?

João Zinclar – As imagens captadas revelam a diversidade de um povo. Expressão de um Brasil contraditório e de luta. O povo ribeirinho traduz as lutas populares no Brasil. Muitas vezes desarticuladas, essas ações estão repletas de vida e inovação. Lutas que incorporam tradições seculares, povos indígenas, a religiosidade, a luta contra a opressão num momento em que elas assumem a vanguarda numa luta pela preservação dos bens comuns, não em oposição ao desenvolvimento, mas propondo pensar as questões: Qual desenvolvimento? E pra quem? Busquei captar essa relação entre um projeto "moderno" que se apropria dos bens coletivos em nome de um único desenvolvimento possível e um mundo que se constrói, pensando na preservação dos valores coletivos sem abrir mão de avançar por melhores condições de vida.

IHU On-Line – O que o São Francisco representa para o povo que vive em seu entorno?

João Zinclar – Representa a vida em todos os sentidos, sem chavão, o São Francisco é a sobrevivência de homens e mulheres que
dependem de suas águas, contam com a potencialidade de sua biodiversidade para desenvolverem sua forma de economia independente, sua cultura de vida, amparados na pesca e na agricultura de vazante e familiar.



Fonte: Instituto Humanitas Unisinos

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