quarta-feira, 14 de maio de 2008

Merenda para o ensino médio

Merenda para o ensino médio

Entrevista Renato S. Maluf

Presidente do Consea pede aprovação de projeto que amplia oferta e diz que país seria melhor se tratasse tão bem das crianças como cuida das vacas.
Lúcio Lambranho
Congresso em Foco
Ao contrário do que muita gente imagina, o Fome Zero não acabou. É tocado pela Secretaria de Articulação Institucional e Parcerias do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Mas, na prática, o combate direto à fome foi substituído pelo governo com a ampliação do Bolsa Família.
E, há pelo menos três anos, o tema está fora dos holofotes e das preocupações midiáticas do governo e do presidente Lula, que conseguiu, no início do primeiro mandato, levar a idéia até mesmo para o debate internacional.
É também sem muito alarde que trabalha no anexo da Presidência da República, em Brasília, o presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutrição (Consea), Renato Maluf.
Com mandato até 2009, Maluf tem uma missão difícil pela frente, considerando-se que o combate à fome está, digamos, fora de moda.
Ele pretende convencer o Congresso, cercado pelo lobby da bancada ruralista, que tem ganhado apoio direto do governo em questões do seu interesse, a investir mais de R$ 362 milhões na inclusão da merenda escolar no ensino médio. Hoje esse direito está restrito aos alunos da educação infantil e fundamental.
A oferta de alimentação a esses alunos, segundo o Consea, pode ajudar a diminuir a evasão e a repetência, principalmente no período noturno. É que na escola pública muitos jovens vão do trabalho direto para a escola e sem fazer a refeição noturna.
Por isso, Maluf já cobra mais empenho do governo e do Congresso. "Eu espero que o Congresso trate disse logo. Eu acho que o governo pode articular, mas ainda não vi isso totalmente na rua. Acho que ainda é preciso um pouco mais de empenho", diz.
O grande embate que o doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) deve enfrentar com os ruralistas é a proposta de que 30% dos alimentos comprados para a merenda escolar venham dos agricultores familiares e dos assentados da reforma agrária.
Vacas e crianças - O presidente do Consea também defende a universalização o Sistema de Gestão Federal e Estadual de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan). Por enquanto, o Sisvan existe em quase todos os municípios, mas a maioria funciona de forma precária e o atendimento se limita às famílias do Bolsa Família.
"Se a gente dedicasse às crianças a mesma atenção que dedicamos às vacas que exportamos, estaríamos muito melhor", dispara.
Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, o presidente do Consea também não foge das brigas com os produtores de etanol, do atual modelo de produção de alimentos e até mesmo do Legislativo, com o qual ele terá de lidar diretamente em breve.
Para Maluf, a produção de etanol não ajuda na diminuição das desigualdades sociais no Brasil e ainda há dúvidas sobre sua ação sobre o meio ambiente. "Pode surgir energia renovável, mas que não sai sociedade justa não sai não", diz. "Há pesquisas que mostram que o etanol tem eficiência econômica, mas, dependendo de como for produzido, também pode contribuir para o aquecimento global", contesta.
Eu não quero acusar um usineiro contemporâneo pelo que fez um coronel no passado. Há quatro séculos que essa gente controla o Estado. Eles têm uma trajetória marcada pela concentração da riqueza, das terras, da superexploração do trabalho", ressalta Maluf ao falar dos usineiros.
Para Maluf, a crise dos alimentos é de modelo. Não é conjuntural e talvez nem mesmo passageira. Ele defende com veemência a aproximação da produção do consumo e a redução do "passeio" das mercadorias para reduzir os custos com o transporte. O ideal também seria, segundo o economista, intensificar a produção de forma mais sustentável e agroecológica.
Nós temos um sistema alimentar global, conduzido pelas políticas dos Estados Unidos e da União Européia, absolutamente controlado por não mais do que seis grandes corporações internacionais. E que no caso do Brasil beneficia meia dúzia de grandes exportadores. Esse é um modelo em crise", avalia.
Ridícula - Sobre o Congresso, ele não deposita muitas esperanças e sustenta que, sem uma reforma política, não será possível resolver o problema da fome, que ainda atinge hoje 20 milhões de brasileiros, cerca de oito milhões deles considerados indigentes.
O presidente do Consea também não poupa críticas aos legisladores. "A qualidade do debate congressual no Brasil se tornou ridícula. Pavorosa. Cadê o debate programático?", questiona.
Vinculado à presidência da República, o conselho tenta articular a sociedade civil e cobra do governo federal ações para garantir a segurança alimentar e o combate à fome no país. O colegiado, que tem caráter apenas consultivo, é atualmente composto por 57 conselheiros. São 38 representantes de entidades civis, 19 ministros ou representantes do governo e 23 observadores convidados.
Saiba como pensa um dos principais articuladores da política de segurança alimentar no país, lendo a íntegra da entrevista concedida ao site:
Congresso em Foco – O que mudou na segurança alimentar desde que o sociólogo Betinho propôs aquela campanha de combate à fome na década de 90? É possível saber hoje quantas passam fome ou tenham algum problema de nutrição no Brasil?
Renato Maluf – Acho que mudou em relação ao contexto do Betinho pelo fato – fruto até da luta dele e de outros – da questão passar a ser reconhecida. E ter um tratamento político devido. Isso já é em si é uma grande conquista. Porque a fome, como Josué de Castro dizia, era um tabu sobre o qual não se podia falar. Essa é a primeira grande conquista. A segunda grande conquista foi que hoje compreendemos o fenômeno e tratamos de uma maneira melhor com o foco da segurança alimentar e nutricional que foi construído nestes anos todos no Brasil. Do ponto de vista da condição das pessoas, as políticas sociais implementadas mais recentemente têm resultado bastante visíveis na melhoria de muitos indicadores no que se refere ao acesso à alimentação, à condição nutricional e à saída da pobreza.
Mas quais seriam os indicadores?
Tem um tipo de indicador indireto que é o mais universal, mas o mais limitado deles, que é a renda. É um indicador de pobreza e de indigência e por ele você deduz a maior ou menor dificuldade de acesso aos alimentos. Esse é um indicar nacional de pesquisa regular feita pela Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio). Por esse indicador, a pobreza está caindo no país, vem caindo sistematicamente, e nós devemos estar com um número próximo de 20 milhões de indigentes.
Quando o Betinho começou a campanha eram 40 milhões?
A história dos 40 milhões é dos que vivem a baixo da linha de pobreza. A linha de pobreza hoje deve estar em 20 e poucos milhões, então os indigentes são cerca de nove milhões. Eu estou usando dados do salário mínimo. Se você usar outro indicador de renda como o dólar por dia, do Banco Mundial, vai encontrar valores menores da Pnad e do Ipea. Mas a maioria dos pesquisadores usa um quarto de um salário mínimo per capital como indigência e meio salário mínimo como pobreza. Outro indicador, que infelizmente a gente tem menos porque não tem um sistema bem montado, é o que mede diretamente a condição nutricional, sobretudo das crianças. Por isso, a gente tem insistido muito na necessidade de instalar definitivamente o Sisvan, o Sistema de Gestão Federal e Estadual de Vigilância Alimentar e Nutricional em todos os municípios com uma cobertura universal. Ai nós poderíamos ter um dado direto da condição nutricional de crianças.
Qual é dificuldade de consolidar o Sisvan?
Não é muita. Principalmente, vontade política de fazer. Se dedicássemos às crianças a mesma atenção que dedicamos às vacas que exportamos, estaríamos muito melhor. Então é uma questão de colocar recursos, que as prefeituras assumam e os governos estaduais idem. Houve recentemente um pequeno problema técnico de compatibilização de sistemas de informação para consolidação dos dados nacionais, mas foi resolvido. Se você andar pelas prefeituras do país, como eu já fiz, e perguntar, vai ver coisas inacreditáveis. Mas as prefeituras acham que tem que aplicar o Sivan na amostra do Bolsa Família. Então eu só acompanho a condição das crianças que são atendidas pelo Bolsa Família. Como se fosse a referência, mas o Sivan não é para acompanhar o Bolsa Família. É feito para acompanhar o estado nutricional das famílias. Nós temos necessidade de colocar equipamentos, e ele é muito simples. Uma balança e um computador. Mas basta a prefeitura assumir e os médicos da rede de atenção básica decidirem que é importante fazer a medição, o acompanhamento antropométrico. É absolutamente possível estender para todos os municípios e universalizar.
O senhor falou da atenção dada às vacas e às crianças. Mas o senhor não acha que esse governo está dividido entre o apoio político de uma numerosa bancada ruralista no Congresso e as questões que envolvem meio ambiente e a fronteira agrícola, a produção de transgênicos e a agricultura familiar e orgânica?
Acho que o governo se divide com relação a isso porque a sociedade brasileira se divide em relação a isso. Não é uma questão só de governo. É claro que o governo tem suas opções de construção de alianças, mas não foi o governo que inventou o agronegócio e o apoio à exportação. Então há uma divisão na sociedade. Podemos afirmar que o sentimento majoritário da população é preservacionista. Agora, a visão de negócio dos alimentos e do uso da terra como mercadoria, da ocupação da Amazônia, ela é compartilhada por alguns setores da sociedade. Vá perguntar a algum prefeito da Amazônia se quer que mantenha a floresta ou se ele quer encher aquilo de soja, caminhão ou plantar pinos. É uma visão deles de desenvolvimento. Eu já vi isso mais de uma vez. Acho que o governo se divide. Acho que ele tem feito coisas muito importantes tanto no campo ambiental quanto na agricultura familiar e das políticas sociais. Há que se reconhecer. Se você me perguntar se elas predominam em relação às outras, eu diria que não.
Mas seria importante que essas políticas sociais predominassem para garantir a segurança alimentar no Brasil?
Eu acho que sim. Eu tenho uma visão de que a crise de alimentos que estamos vivendo é uma crise de modelo. Não é só uma crise conjuntural. Você pode dar várias respostas a ela. Uma delas é mais do mesmo. Estão vamos seguir com esse padrão de produção intensivo, de grande escala com muito agroquímico e tecnificado. Esse padrão do qual o Brasil é um dos principais representantes do mundo. Isso é uma resposta, a resposta que muita gente quer que se dê. É preciso produzir mais sem discutir a maneira como está sendo feito. Essa é a resposta que beneficiará a alguns, mas que tem limites absolutamente visíveis. Então esse é um modelo que tem que ser revisto. Tem que caminhar na direção de aproximar produção e consumo e reduzir o passeio das mercadorias. Intensificar a produção de forma mais sustentável e agroecológica. E o outro componente da crise do modelo é essa visão que se constrói uma segurança alimentar global baseada em fluxo comercial e com países desaparelhados para im plementar políticas soberanas. A falácia desse modelo está absolutamente evidente. Nós temos um sistema alimentar global conduzido pelas políticas dos Estados Unidos e da União Européia absolutamente controlado por não mais do que seis grandes corporações internacionais tanto na ponta dos alimentos quanto na ponta dos insumos e fertilizantes. E que no caso do Brasil beneficia meia dúzia de grandes exportadores. Esse é um modelo em crise. Você pode aproveitar essa crise dos alimentos para revê-lo se quiser ou não. Então, por isso, que eu digo que é preciso rever sim. Seria preciso que outras concepções de produção de alimentos e de organização da atividade econômica ganhassem mais espaço. É um embate permanente na sociedade e no governo.
A agricultura familiar produz hoje 70% dos alimentos que o brasileiro consome. O senhor acredita que há pouco espaço para esse setor dentro do governo e na sociedade?
A agricultura familiar que representa esses 70% é muito diversa. Vai se encontrar nesses 70% a agricultura familiar mais capitalizada e integrada à agroindústria. A maneira, a importância e a visibilidade políticas que eles recebem dependem de você diferenciar esse segmento. Ele não é homogêneo. Eu acho que esse segmento ganhou muito nesse governo em espaço. Por dois indicadores. Um deles é a evolução do Pronaf. O Pronaf multiplicou por seis os seus recursos. Saiu de dois ou três bilhões para quase 11 neste ano. O número de contratos aumentou muito. A criação do PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, é outro exemplo, ainda que ele seja um programa meio claudicante no que se refere a recursos e na sua operacionalização. Mas ele ganhou muita importância. Ganhou a sociedade e os movimentos de agricultores. Nesse sentido, cresceu o espaço. Eu não diria a mesma coisa da reforma agrária. A reforma agrária ainda é uma área com uma definição muito insuficiente.
Qual é sua avaliação sobre a reforma agrária e qual é a proposta do Consea para integrar os assentamentos na segurança alimentar?
A reforma agrária é inquestionavelmente importante e continua um tema atual. A comprovação disso eu tive, para minha surpresa, aliás, na Conferência que a FAO realizou aqui no Brasil, a Conferência Latino-Americana. Um dos temas era a Conferência sobre reforma agrária e desenvolvimento organizado com um forte apoio brasileiro em Porto Alegre ano passado. Quando esse tema entrou em debate na plenária, teve apoio quase que unânime dos países da América Latina com relação à importância do tema. Temos mais uma comprovação. A reforma agrária está na agenda.
Quais são os componentes de segurança alimentar num programa de reforma agrária?
Eu acho que são pelo menos dois. Para entender esses componentes, é preciso considerar que família rural, o agricultor familiar, combina a dupla condição de produtor e de demandante de alimentos. E como é nesse setor da sociedade que serão encontrados os mais elevados índices de pobreza, ao apoiá-los você simultaneamente melhora o acesso aos alimentos de gente pobre e melhora a oferta para a sociedade porque eles são produtores. Por isso é que agricultura familiar, e dentro dela a reforma agrária, tem papel estratégico na segurança alimentar. Pelos dois lados, pelo lado da demanda e da oferta.
Como assim?
Os assentamentos geram ocupação do espaço de forma mais eqüitativa e geração de oportunidades de trabalho. E se tiverem qualidade também podem ter uma relação mais amigável com a natureza. Nesse caso, de fornecedor de alimentos, seria preciso, para que a reforma agrária cumprisse o papel relevante na segurança alimentar, uma assistência técnica que orientasse a produção. Não basta ser produção de agricultor familiar. Tem que ser uma produção que respeite a natureza e que forneça produtos de qualidade e, principalmente, uma das grandes metas da agricultura familiar, para diversificar hábitos alimentares. A nossa referência principal é a aproximação produção e consumo. Essa é a chave para discutir essa crise de alimentos. Não estou negando que possamos ter sistemas integrados de produção e abastecimentos nacionais e mesmo internacionais. Mas a chave para reduzir o uso da energia, a transformação dos alimentos, custos no transportes e valorizar a variedade de hábitos é aprox imar a produção do consumo. E a reforma agrária e a agricultura familiar permitem isso. Desde que você tenha suporte. Não dá para jogar as pessoas no campo. E uma política agrícola que promova essa aproximação.
Qual é a sua avaliação sobre essa polêmica entre a produção de alimentos e de bicombustíveis? O que o senhor acha do programa brasileiro de biocombustíveis, que insere a agricultura familiar e a reforma agrária?
São dois componentes. Tem um componente dos agrocombustíveis que é o etanol. Que é totalmente diferente do biodiesel. No componente do etanol, embora reconheça que é necessário fazer um esforço para construir fontes renováveis de energia, eu penso que em primeiro lugar que há uma questão que não está sendo feita, que é sobre o consumo. Ninguém está discutindo consumo de energia. Só se discute como se troca petróleo por qualquer outra coisa mantido o patamar de consumo. O que é absolutamente inviável. Feita essa discussão, quais são as fontes melhores? De fato o etanol vindo da cana-de-açúcar tem algumas vantagens. Uma taxa de conversão e do ponto de vista de eficiência econômica. Problemas: esse é um setor secularmente poderoso nesse país. Há quatro séculos que essa gente controla o Estado. Eles têm uma trajetória marcada pela concentração da riqueza, das terras, da superexploração do trabalho.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 52% dos casos de trabalho escravos registrado no ano passado aconteceram no setor sucroalcooleiro. O que o senhor acha disso?
Fazem isso há quatro séculos como exportadores de trabalho escravo no Brasil. Eu não quero acusar um usineiro contemporâneo pelo que fez um coronel no passado. Mas que muitos desses hábitos dessa sociedade autoritária nossa permanecem. Eu acho que ele tem que ser olhado com o cuidado e objeto de regulação pública. Primeiro no zoneamento agroecológico, onde pode onde não pode. Segundo, é preciso haver regulação de relações de trabalho. Terceiro, uma forte fiscalização ambiental sob o ponto de vista do cultivo. Daqui pode surgir energia renovável, mas que não sai sociedade justa não sai não. Então eu não deposito minhas fichas no modelo concentrador e de grande escala. A gente já conhece isso e sabe aonde vai dar. Agora, o zoneamento agroecológico tem que levar em conta não apenas onde a cana está se expandindo, mas o que ela está empurrando. Eles argumentam com muita freqüência que não se planta cana na Amazônia. Não é verdade, já tem pressão para plantar no Acre no Pará. Mas digamos que até o momento a expansão tem sido sobre área de pecuária. Mas essa pecuária tem que ir para algum lugar. As vacas e os bois vão para algum lugar e provavelmente vão para a Amazônia. Então o país precisa decidir o que quer fazer com a Amazônia. Mas há indicadores de expansão de milho e soja no Paraná.
E o biodiesel?
O biodiesel é outra conversa. No caso do biodiesel esse é programa bastante interessante. Porque o etanol vai além da capacidade do Estado brasileiro de regular. É uma coisa antiga e não é um governo que regula. O governo está correndo atrás. No caso do biodiesel é uma criação do governo, então é diferente e é ali que você vai ver são preocupações sociais e ambientais quando eles dizem que o agricultor não pode dedicar mais de certa parcela para plantar mamona, por exemplo. E como eles têm requisitos para a indústria que vai fazer o biodiesel do ponto de vista do seu funcionamento é um programa criado e com regulamentação. A dúvida está na capacidade da agricultura familiar e de até onde se pode ir com isso. E a capacidade da agricultura familiar de produzir matéria prima.
Ainda não se sabe se vale à pena?
Os indicadores técnicos são muitos favoráveis de conversão da matéria-prima em energia. Mas ainda estamos para ver do ponto de vista da escala.
Não há faz muito tempo o presidente Lula chamou os usineiros de “heróis” publicamente. E a Câmara aprovou recentemente um projeto de lei, com apoio da bancada do governo e que saiu do Executivo, permitindo a contratação de safristas sem o registro em carteira de trabalho. Fiscais do trabalho e procuradores avaliam que a nova lei é um estímulo ao trabalho escravo. Afinal, esse governo tem um discurso trocado?
Eu não concordo. Eu já disse publicamente que não concordo com essa qualificação dos usineiros. Acho que o presidente Lula tem se mostrado bastante entusiasmado com algumas possibilidades econômicas do país. Tem razões para ter esse entusiasmo dada a sua função de presidente. O próprio presidente Lula ganhou notoriedade internacional pela defesa que fez de coisas importantes como o combate à fome, pautando internacionalmente a pobreza. Por isso é que eu acho que, neste momento, se espera do Brasil um comportamento à altura da sua responsabilidade internacional. O Brasil não pode aparecer como um mercador de commodities. O país é conhecido internacionalmente porque vende soja, frango e produz etanol. E para isso mobiliza seus heróis. Isso é uma visão pobre de país. Não corresponde ao país. Não corresponde inclusive com o perfil do presidente e do que o seu governo tem feito. Acho que a política internacional do país é muito correta. Política externa, não a comercial. Esse é um setor poderosíssimo e é preciso ter instrumentos adequados para regulá-lo e colocá-lo dentro dos limites do tolerável do ponto de vista do que representa socialmente. Há pesquisas que mostram que o etanol tem eficiência econômica, mas, dependendo de como for produzido, também pode contribuir para o aquecimento global.
O senhor acha que o Brasil vai conseguir vencer essa dicotomia a curto ou médio prazo de um país que pode ser auto-sustentável ou ser um grande exportador de commodities?
Acho difícil. Não que eu seja cético. Eu acho que a gente avançou muito. É uma crivagem que se tem na sociedade brasileira. A sociedade brasileira construiu durante muito tempo uma das maiores desigualdades do mundo. Desigualdade no Brasil tem nome e sobrenome. Aponte uma grande fatalidade natural que explique? Nem o semi-árido explica. Nem as condições adversas do semi-árido são capazes de explicar. Com muito pouco no semi-árido, já se fez coisa que emancipa pessoas, como o programa maravilhoso que criou um milhão de cisternas.
Mas esse programa não está patinando nas suas previsões de construção de cisternas?
Não. Está muito bem. Vai devagar porque o método que eles estão usando, o pessoal da ASA, é o que respeita a dinâmica social. Não é o prefeito chegar lá, construir uma cisterna e depois ir embora. Os que fizeram isso, a cisterna virou galinheiro. Isso eu já vi lá. Agora as cisternas feitas dentro do movimento social e com organização levam as pessoas a se organizarem. Eu acho que a gente melhorou. Apenas acho que enfrentar a desigualdade no Brasil é enfrentar estruturas muito poderosas que estão enraizadas.
Essa estrutura tem um lobby muito forte no Congresso?
O Congresso é a expressão disso. Como é que você pode imaginar que é possível enfrentar todas essas desigualdades que todos nos sabemos com uma determinação política fundamental num país que não é capaz de fazer a reforma política. Com esse padrão de debate político que nós temos neste país, abaixo da crítica. A qualidade do debate congressual no Brasil se tornou ridícula. Pavorosa. Cadê o debate programático?
Falando em Congresso, o Consea, junto com outras entidades, propôs um projeto de lei que já está na Câmara prevendo a inclusão do ensino médio das escolas públicas no programa de merenda escolar. O senhor acha que o governo vai se mobilizar para aprovar esse projeto?M
Aquilo é um marco na política nutricional no Brasil caso venha a ser aprovado. Em vários aspectos. Primeiro, porque trata a alimentação escolar como um direito. Não como esmola nem como uma ajudazinha. É um direito que as crianças têm de se alimentar quando vão a escola. E se alimentar adequadamente. Segundo porque estabelece um compromisso com os entes federativos que não estava estabelecido em lei. Esse é o mais antigo programa que temos no Brasil, quase 50 anos, com uma regulamentação absolutamente precária. E a fiscalização idem. Terceiro porque obriga que 30% das aquisições de alimentos da merenda sejam feitas da agricultura familiar da região. Isso é fundamental. Capacitando a agricultura familiar para atender essa demanda, que é muito grande, é um estímulo ao desenvolvimento local muito importante. Estabelece responsabilidade para os gestores, mas estabelece que as crianças não sejam penalizadas pela incúria de gestores. Até pouco tempo, quando o gestor não prestav a contas, a alimentação escolar era suspensa. E quem pagava eram as crianças. O Consea participou de uma mudança. Agora, a Conab entrega diretamente nas escolas enquanto o prefeito acerta suas pendências. A lei acerta isso também.
Mas e a articulação no Congresso sobre esse projeto?
Eu espero que o Congresso trate disse logo. Eu acho que o governo pode articular, mas ainda não vi isso totalmente na rua. Até estamos tentando sensibilizar o presidente Lula nessa direção. O Consea e os ministros. Acho que ainda é preciso um pouco mais de empenho.
O que o Josué de Castro, patrono do Consea, diria hoje do Brasil se ele estivesse vivo? Eu espero que ele fique contente com o empenho que nós temos feito para valorizá-lo. Pelo Consea, sobretudo. Vamos comemorar o centenário de nascimento dele em 5 de setembro no Recife. E que o tema vai ser o acesso à água. Acho que ele nos pediria para fazer uma atualização de seu mapa sobre a geografia da fome. Mas, ao mesmo tempo, ele diria que estamos conseguindo, como disse quando falei sobre Betinho, o reconhecimento político do tema. Que o tema é uma questão que tem que ser tratada e não é mais um tabu. Quanto aos avanços, eu diria que o Josué teria razões para se alegrar e algumas para se preocupar. Coisas inovadoras estão sendo colocadas em prática e algumas velhas práticas ainda não foram removidas. Uma visão de saúde curativa, medicalizada. Acho que isso ele não gostaria. Uma maior valorização da prevenção, da educação e do acompanhamento nutricional que está nos faltando. Ele então teria motivos para se preocupar.

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