sábado, 22 de setembro de 2007

O princípio da gestão democrática na educação

O princípio da gestão democrática na educação

Gestão democrática da educação pública

Carlos Roberto Jamil Cury¹

A gestão democrática tem se tornado um dos motivos mais freqüentes, na área educacional, de debates, reflexões e iniciativas públicas, a fim de dar seqüência a um princípio posto constitucionalmente e reposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Comumente, o princípio da gestão democrática tem sido mais referido à eleição de diretores ou diretoras em escolas públicas. Tal dinâmica, inclusive, faz parte de várias Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais. Entretanto, sem negar esta possibilidade, desde logo inscrita neste princípio maior para uma função ou mesmo um cargo na estrutura do magistério e, sem se desviar do princípio federativo, cumpre refletir sobre as exigências e desafios trazidos por esta inserção constitucional inédita.

Gestão provém do verbo latino gero, gessi, gestum, gerere e significa: levar sobre si, carregar, chamar a si, executar, exercer, gerar. Trata-se de algo que implica o sujeito. Isto pode ser visto em um dos substantivos derivado deste verbo. Trata-se de gestatio, ou seja, gestação, isto é, o ato pelo qual se traz em si e dentro de si algo novo, diferente: um novo ente. Ora, o termo gestão tem sua raiz etimológica em ger que significa fazer brotar, germinar, fazer nascer. Da mesma raiz provêm os termos genitora, genitor, gérmen.

A gestão implica um ou mais interlocutores com os quais se dialoga pela arte de interrogar e pela paciência em buscar respostas que possam auxiliar no governo da educação, segundo a justiça. Nesta perspectiva, a gestão implica o diálogo como forma superior de encontro das pessoas e solução dos conflitos.

Também o substantivo gestus (em português: gesto) deriva deste verbo e significa um feito, uma execução. Quando usado no plural latino, isto é, gesta, significa feitos ilustres, notáveis, nobres e corajosos.

A gestão, dentro de tais parâmetros, é a geração de um novo modo de administrar uma realidade e é, em si mesma, democrática, já que se traduz pela comunicação, pelo envolvimento coletivo e pelo diálogo.
Esta raiz etimológica já contém em si uma dimensão bem diferente daquela que nos é dada, de modo caricato, do gerente, especialmente o de bancos, como expressão de um comando frio, de uma ordem autoritária ou de uma iniciativa tecnocrática.

A gestão democrática, enquanto temática histórica, nos move em direção contrária àquela mais difundida em nossa trajetória política, em que os gestores se pautam ora por um movimento paternalista, ora por uma relação propriamente autoritária. Paternalismo e suas variantes, autoritarismo e congêneres são formas de pensar e agir sobre o outro não reconhecido como igual.
A polis ateniense já indicava ser ela, em sua praça, o lugar da cidadania. Ali se poderia exercer a liberdade de expressão, a igualdade de presença e a possibilidade de se tornar governante, sempre sob o signo do diálogo e da rotatividade.

Bobbio (1986), em O Futuro da Democracia, reporta-se à educação para a cidadania como sendo o único modo de fazer com que um súdito transforme-se em cidadão. No cidadão, a democracia brotaria do próprio exercício da prática democrática.

Se a noção da gestão democrática sob os direitos políticos é uma conquista da modernidade, ela se torna mais plena de significado para o Brasil.

O golpe de 1964 trouxe consigo a interrupção do desenvolvimento de muitas promessas de democratização social e política em gestação, inclusive da educação escolar e popular no Brasil. O regime militar, por sua forma política de se instalar e de ser, acabou por instaurar, dentro do campo educacional, comandos autoritários de mandamentos legais, os quais, por sua vez, se baseavam mais no direito da força do que na força do direito. O temor, a obediência e o dever suplantaram o respeito, o diálogo e o direito.

O movimento de contestação ao regime militar e sua derrubada contaram com a ampla participação da população, na qual o professorado esteve sempre presente. A mobilização geral foi capaz de derrubar a ordem autoritária e de criar um novo ordenamento jurídico nacional em bases democráticas.
A ordem jurídica de caráter democrático se impôs como um todo, aí compreendida a área educacional. Por isso, a ordem constitucional que nasceu em 1988 consagrou princípios caros à democracia e à educação democrática.
Ela é tanto um modo de se opor ao que até então vigorava em termos de medo e de despotismo, quanto uma maneira de se propor a gestação de uma nova maneira de se administrar a coisa pública.

Seja em contraposição a esta cultura instalada tradicionalmente, seja em função da criação e manutenção dos institutos próprios da democracia, nascem os princípios éticos estabelecidos em nossa Constituição de 1988.

A Constituição faz uma escolha por um regime normativo e político, plural e descentralizado, no qual se cruzam novos mecanismos de participação social com um modelo institucional cooperativo, que amplia o número de sujeitos políticos capazes de tomar decisões. Por isso mesmo, a cooperação exige entendimento mútuo entre os entes federativos e a participação supõe a abertura de novas arenas públicas de deliberação e mesmo de decisão.

A insistência na cooperação, a divisão de atribuições, a assinalação de objetivos comuns com normas nacionais gerais indicam que, nesta Constituição, a acepção de sistema se dá como sistema federativo por colaboração, tanto quanto de Estado Democrático de Direito.

E o campo educacional, junto com a derrubada do autoritarismo e com o processo em andamento de uma nova ordem constitucional, propugnou a inclusão do princípio da gestão democrática na Constituição.
O art. 206, VI da Constituição Federal, o formaliza como tal para as escolas oficiais.

Este princípio, ainda que abrangendo tão só os sistemas de ensino propriamente públicos, se justifica como tal, com maior razão, porque a educação escolar é um direito próprio de um serviço público por excelência.
Mesmo que legalmente não atinja o setor privado, o caráter ético e axiológico da democracia paira sobre todas as instituições escolares.

Daí a educação escolar se tornar pública como função do Estado e, mais explicitamente, como dever do Estado, a fim de que cada indivíduo possa se autogovernar como ente dotado de liberdade e ser capaz de participar como cidadão consciente e crítico de uma sociedade de pessoas livres e iguais.

A gestão democrática também comparece na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394/96, no art. 3o., VIII, reforçando o que já fora posto na Constituição. Referindo-se ao pacto federativo nos termos da autonomia dos entes federados, o art. 14 diz:

Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Neste sentido, a regra legal abre espaço para a autonomia dos entes federados encaminharem a gestão democrática para além do que está definido na Constituição e na LDB. Mas é preciso considerar, como sendo pertencentes à gestão democrática, os artigos 12, 13 e 15 que implicam um trabalho em equipe de toda a comunidade escolar.

A gestão democrática foi também alvo de atenção na Lei n. 10.127, de 9 de janeiro de 2001, mais conhecida como Plano Nacional de Educação (PNE).

Num primeiro momento, trata-se da gestão dos recursos, sua eficiência, transparência e modernidade nos meios. Num segundo momento, o texto põe em tela algo que será desenvolvido no próximo tópico e versa sobre gestão financeira e pacto federativo. Neste sentido, o texto usa de um adjetivo, no mínimo provocante, quando diz para que a gestão seja eficiente há que se promover o autêntico federalismo em matéria educacional, a partir da divisão de responsabilidades previstas na Carta Magna (...) portanto, uma diretriz importante é o aprimoramento contínuo do regime de colaboração. (grifo adicionado). Num terceiro momento é que se põe diretamente a gestão democrática, recomendando Conselhos de Educação revestidos de competência técnica e representatividade, conselhos escolares e formas de escolha da direção escolar que associem a garantia da competência ao compromisso com a proposta pedagógica emanada dos conselhos escolares e a representatividade e liderança dos gestores escolares.

Há, ainda, uma outra âncora constitucional que, neste processo, dá mais um fundamento para a gestão democrática. Trata-se da noção de Estado Democrático de Direito tal como expresso em nossa Constituição, no seu Preâmbulo e no seu art. 1o., inclusive seu § único.

O Estado Democrático de Direito é aquele que reconhece explícita e concretamente a soberania da lei e do regime representativo e, por isso, é um Estado de Direito. Ao mesmo tempo, reconhece e inclui o poder popular como fonte do poder e da legitimidade e o considera como componente dos processos decisórios mais amplos de deliberação pública e de democratização do próprio Estado. Veja-se, por exemplo, o artigo 14 da Constituição que, decorrente do art. 1o., reconhece o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular como formas alternativas e complementares do processo democrático representativo, como que a reforçar o princípio democrático-rousseauniano da “vontade geral”.

A gestão democrática é um princípio do Estado nas políticas educacionais que espelha o próprio Estado Democrático de Direito e nele se espelha, postulando a presença dos cidadãos no processo e no produto de políticas dos governos. Os cidadãos querem mais do que ser executores de políticas, querem ser ouvidos e ter presença em arenas públicas de elaboração e nos momentos de tomada de decisão. Trata-se de democratizar a própria democracia. Tal é o caso dos múltiplos Conselhos hoje existentes no âmbito de controle e fiscalização de recursos obrigatórios para a educação escolar, da merenda e de outros assuntos. Tal é o caso também dos orçamentos participativos em diversos municípios do país. É neste sentido que a gestão democrática é um princípio constituinte dos Conselhos intra-escolares como os Colegiados, o Conselho da Escola, os Conselhos dos Professores e outras formas colegiadas de atuação.

A gestão democrática da educação é, ao mesmo tempo, transparência e impessoalidade, autonomia e participação, liderança e trabalho coletivo, representatividade e competência.

Voltada para um processo de decisão baseado na participação e na deliberação pública, a gestão democrática expressa um anseio de crescimentos dos indivíduos como cidadãos e do crescimento da sociedade enquanto sociedade democrática. Por isso, a gestão democrática é a gestão de uma administração concreta. Por que concreta ? Porque o concreto (cum crescere, do latim, é “crescer com”) é o que nasce com e que cresce com o outro. Este caráter genitor é o horizonte de uma nova cidadania em nosso país, em nossos sistemas de ensino e em nossas instituições escolares. Afirma-se, pois, a escola como espaço de construção democrática, respeitado o caráter específico da instituição escolar como lugar de ensino/aprendizagem.

Neste sentido, a gestão democrática é uma gestão de autoridade compartilhada.

Mas, por implicar tanto unidades escolares como sistemas de ensino, a gestão vai além do estabelecimento e se coloca como um desafio de novas relações (democráticas) de poder entre o Estado, o sistema educacional e os agentes deste sistema nos estabelecimentos de ensino.

Nascem daí os desafios, nascem daí as perspectivas de uma democratização da escola brasileira, seja como desconstrução de desigualdades, de discriminações, de posturas autoritárias, seja como construção de um espaço de criação de igualdade de oportunidades e de tratamento igualitário de cidadãos entre si.

Nesse sentido, mais do que à União e aos seus governantes, mais do que aos Estados e Municípios e aos governantes, cabe às comunidades educacionais, lideradas por seus dirigentes oficiais, ao conjunto dos docentes no exercício do magistério e às associações docentes dos sistemas de ensino ampliar a consciência da relevância desse princípio. Dessa consciência, mais e mais ampliada, será possível pressionar por uma explicitação da gestão democrática que faça avançar a educação escolar como instituição republicana aberta à representatividade e à participação e voltada para um processo mais rico de ensino/aprendizagem que faça jus à educação como formadora da cidadania e qualificadora para o trabalho.

Nota
1- Professor da PUC-MG. Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Fonte:
Salto para o futuro / TV Escola
www.tvebrasil.com.br/salto

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