domingo, 17 de junho de 2007

Formação e hegemonia cultural

Claudio Nascimento

Na história política do Brasil, já vivemos várias ondas democratizantes: a que se iniciou no pós Guerra, em 1945, e se estendeu até o golpe militar em 1964; a que se seguiu ao período de autoritarismo e foi de 1979 até 1989, quando se ingressou numa onda conservadora, que durou até mais ou menos 1998, com a entrada do segundo Governo FHC, já em crise, e a que se abriu com as eleições de 2002, que, sem dúvida, significaram uma quebra da onda conservadora, abrindo um campo imenso de possibilidades políticas e culturais.
Betinho, o animador da luta contra a fome, já assinalava o divórcio existente entre a esquerda e a cultura. Antônio Cândido entende que as mutações globais em curso no mundo exigem que se pense a totalidade da sociedade, e uma das grandes questões diz respeito à construção de projetos alternativos e ao papel da cultura. Do período que vai do final dos anos 50 até 1964, segundo ele, não se tinham manifestado visivelmente, fora da burguesia, forças que impusessem “culturas” paralelas. Mas, no fim do decênio de 50 e começo de 60, através da ação de vanguardas e amplos movimentos sociais de estudantes, populares e intelectuais, iniciou-se a construção de uma contra-hegemonia, onde a cultura foi uma das molas mestras: o cinema novo, o teatro popular, a ação de Paulo Freire, o governo de Arraes. O fenômeno foi tão importante que os poderes competentes de 1964 tomaram providências imediatas.
Não foi, portanto, por acaso que Gramsci, no campo da educação, tornou-se uma referência fundamental como formulador da teoria da “hegemonia cultural”. Uma delimitação das matrizes culturais que estiveram presentes na ”formação” da educação popular a partir daí, mais especificamente a partir do golpe militar, remete à questão da formação política em geral, que pode ser analisada em três momentos:
1) A época do primeiro ciclo da “Nova Esquerda”, que vai de 1964 a 1971, tendo, como eixo, o “militarismo” e o “vanguardismo”;
2) Após a derrota dessa esquerda e de um interregno, que vai de 1971 a 1973, segue-se um período de “dispersão”, de 1974 a 1978, que converge para uma reestruturação no campo da “educação popular”, incluindo o trabalho de “formação sindical” nos sindicatos e nos Centros de Educação Popular;
3) O período de 1978 a 1983, que abre um novo ciclo, no qual os movimentos sociais são um dos elementos da transição política, apontando para uma nova concepção da política, a partir da intervenção direta dos interessados. Eles colocaram a reivindicação democrática referida às esferas da vida social em que a população trabalhadora estava diretamente implicada: nas fábricas, nos sindicatos, nos serviços públicos e nas administrações nos bairros. A esquerda nascida neste período foi chamada por alguns de "esquerda social", a terceira geração da nossa esquerda.

Essa esquerda social não resume as esquerdas no final dos anos 70 e começo dos anos 80. É, no entanto, o seu cerne. Ela surge, basicamente, dos movimentos sociais que proliferam no período e que refletem complexos e desiguais processos de enfrentamento com o Estado e com o sistema de dominação nos anos 70. O mais importante, e que terá peso mais significativo, é o movimento operário e sindical, que comporta várias formas fora e dentro dos sindicatos oficiais. Os movimentos no campo - pouco estudados até agora - têm um crescimento insuspeitado. Os novos movimentos sociais (mulheres, negros, homossexuais, indígenas, portadores de deficiência, ecológicos) correspondem à (re)descoberta e/ou (re)valorização de temas ausentes ou minimizados pelo pensamento das esquerdas tradicionais ou, o que é mais importante, a uma nova reflexão substantiva sobre a democracia, entendida como espaço de criação de novos direitos.
Como a “esquerda social” não cobria o espectro das esquerdas da época, a educação popular também não foi, em todas as partes, a forma dominante da nova relação da esquerda com seu público, mas ela deu o paradigma, como atesta Eder Sader. A mescla das três matrizes, que estão na base da constituição da educação popular a partir desses ciclos de formação da esquerda, foi fundamental para que a estratégia da educação popular incorporasse a questão da formação/educação/cultura como um elemento estratégico.
A noção de uma nova cidadania ganha significado nesse contexto, intrinsecamente ligada à experiência concreta dos movimentos sociais e expressando o novo estatuto teórico e político que a questão da democracia assumia em todo o mundo. Além do que, essa nova cidadania passa a organizar uma estratégia de construção democrática e de transformação cultural que afirma um “nexo constitutivo” entre as dimensões da cultura e da política.

Com Gramsci, além de Gramsci (o “materialismo cultural” de R.Williams)

Essa transformação cultural para a construção democrática é chamada de hegemonia cultural. Tem por objetivo uma transformação radical, que a sensibilidade agônica e socialista de Mário Pedrosa expressa através da idéia de uma revolução da sensibilidade, revolução esta que só irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, quando os homens tiverem novos olhos para o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuição para superá-las. Essa sim será a grande revolução, a mais profunda e permanente, cuja deflagração implica um novo olhar e uma nova sensibilidade para a questão da educação e da cultura, cultura como uma necessidade vital da mente e dos sentidos, como uma capacidade humana, como práxis, sendo constitutiva da condição humana.
Na mesma perspectiva, o desenvolvimento humano está relacionado à democracia integral, ou seja, a educar-se contínua e ininterruptamente, na prática e na teoria, para o exercício de todas as dimensões do ser humano. Assim, evidencia-se uma vinculação íntima entre desenvolvimento integral e educação, o que significa que quaisquer projetos políticos para o socialismo terão que passar, necessariamente, pela questão cultural, pela hegemonia cultural.
Na adaptação que R. Williams faz do conceito gramsciano, hegemonia não se torna apenas o nível articulado mais elevado da ideologia, mas todo um conjunto de práticas e de expectativas sobre nossa vida, que inclui nossos sentidos, a consignação de nossas energias, nossas percepções formadoras de nós mesmos e de nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores, onde a cultura não é uma esfera autônoma, desvencilhada de ligações materiais e imune ao jogo de interesses que rege uma sociedade de classes. Só se muda algo tão arraigado quanto uma estrutura de sentimentos através de uma nova experiência. Por isso, a tarefa em um movimento bem-sucedido terá que ser tarefa do sentimento e da imaginação, tanto quanto dos fatos e da organização.
Semelhante à Gramsci, Williams pensava que uma hegemonia necessitava construir instrumentos culturais que se traduzissem em tópicos, figuras semânticas, discursos, rituais. Também como Gramsci, negava-se a considerar a cultura um nível “secundário”, recusando a clássica metáfora de “base” e “superestrutura”, o que lhe permitiu, por um lado, acentuar sua idéia do continuum simbólico-prático, e, por outro, renovar a perspectiva de um “materialismo cultural”, fortemente interessado no impacto das instituições e dos meios tecnológicos na produção do simbólico. Com tais horizontes, a formação passa a significar um grande trabalho de educação política e cultural, tanto em seus conteúdos e metodologia, quanto em seus objetivos ou intencionalidade política, e aponta, a longo prazo, para a construção de uma hegemonia popular. Trata-se, pois, de uma “revolução cultural do cotidiano”, de gerar uma cultura democrática.

Formação e hegemonia cultural

A construção de alternativas hegemônicas implica a busca de “recursos de hegemonia cultural”. E o Brasil possui um imenso patrimônio teórico alternativo, como o filão revolucionário-utópico, expressão do movimento romântico anti-capitalista, que se propaga sob diferentes gradações, ou com acento maior sobre a história, a filosofia e a cultura, do qual emerge a sensibilidade de Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Darci Ribeiro, entre outros, e, com traços mais conservadores e nostálgicos, de Câmara Cascudo e Gilberto Freire, ou com acento maior sobre a política e a economia, como Caio Prado Jr., Octávio Ianni e Celso Furtado. Florestan Fernandes destaca-se pela amplitude temática; talvez, um pensador ponte entre os dois campos.
Agregando a esse fértil terreno de produções teóricas o trabalho do pedagogo socialista Mariátegui, que, ao se manter atento a toda uma área da vida social descuidada pelas correntes oficiais do marxismo, enfatiza que a revolução social implica também uma dimensão ética e cultural, e não apenas política e econômica - idéia de grande atualidade para a conjuntura que vivemos hoje -, podemos pensar a educação popular e seu papel no contexto brasileiro a partir de algumas premissas:

- 1. a educação popular tende a colocar a auto-organização e a autonomia no centro mesmo da construção do projeto político alternativo;
- 2. a educação popular destaca a importância da democracia na construção do novo projeto hegemônico;
- 3. a educação popular põe a cultura popular como fonte de identidade e força do projeto alternativo;
- 4. a educação popular reconhece a vida cotidiana como um espaço de construção da nova hegemonia;
- 5. como uma conseqüência da valorização da cultura popular e da vida cotidiana do povo, a educação popular põe em relevo a importância do papel do indivíduo e da subjetividade;
- 6. a educação popular assume que o “projeto nacional” é construído a partir das experiências concretas e particulares.

Florestan Fernandes, já em 1994, havia captado o núcleo do pensamento mariateguiano: “Observar, representar e explicar processos de longa duração e de uma proposta revolucionária concomitante, que vincula dialeticamente passado, presente e futuro”. Essa proposta porta uma radical subversão das relações intersubjetivas, uma vez que os costumes, os sentimentos, os mitos, os elementos espirituais e formais dos fenômenos a que designamos sociedade e cultura estão nelas fortemente incluídos.

Fonte:

http://www.cidadefutura.org.br/

Referências para leitura:

http://www.cidadefutura.com.br/escola/referencia_detalhe.jsp?art_cd=73

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