quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Centenário de Dom Helder

Brasil - Centenário de Dom Helder

Dom Demétrio Valentini *

Adital - Nesta semana temos uma data especial a agendar. No dia 07 de fevereiro se completam cem anos do nascimento de D. Helder Camara. Para personagens com dimensão histórica, a roupagem adequada é a dos séculos.

De fato, o arco de um século situa melhor a importância e a grandeza de D. Helder. É muito acertada a iniciativa de se promover um "ano centenário", para recolher a grande herança deixada por ele.

A iniciativa parte de diversas instituições, a começar pela CNBB, com a presença do seu atual Presidente, D. Lyrio Rocha, na missa de abertura do "ano centenário", em Recife, defronte à Igreja das Fronteiras.

A Cáritas Brasileira se sente particularmente ligada à pessoa de D. Helder, que foi o seu fundador, no ano de 1956. Por isto, ela se antecipa, e promove uma homenagem especial ao seu primeiro secretário geral e presidente no dia 06 à noite. Quando a liturgia tem uma data especial a celebrar, ela começa no dia anterior, com as "primeiras vésperas". A Cáritas se incumbe de entoar os primeiros louvores, sinalizando que a celebração é de "primeira classe"!

Entre tantos predicados, D. Helder foi indiscutivelmente um grande profeta e um sonhador das grandes utopias humanas e cristãs.

Para descortinar os amplos horizontes suscitados pelo centenário do seu nascimento, podemos lembrar os dois grandes sonhos de D. Helder. Ambos em vista da passagem do milênio, que ele nem pôde ver. Como Moisés que não chegou a pisar a terra prometida, só a enxergando do alto do Monte Nebo, assim D. Helder deixou este mundo em 1999, antes da chegada do novo milênio, que ele sonhou com a generosidade de suas grandes utopias.

Pois bem, para o mundo, D. Helder sonhou o fim da miséria e da fome. Um mundo justo, em paz, reconciliado e fraterno, onde ninguém precisasse viver na miséria e passando fome. Este o mundo que D. Helder sonhou para o milênio que já estamos vivendo!

Para a Igreja, D. Helder sonhou, e divulgou, sua grande utopia, carregada de profundo simbolismo: a convocação do Segundo Concílio de Jerusalém! Para entender a força deste sonho, é preciso saber o que foi o primeiro concílio, descrito na Bíblia e realizado no começo da Igreja. Os apóstolos se congregaram em Jerusalém e perceberam a universalidade do Evangelho de Cristo, que precisava romper os limites estreitos do judaísmo e de quaisquer outras amarras culturais e religiosas, para ser levado a toda a humanidade, que o aguardava como terra sedenta de verdade e de amor, pronta para produzir os frutos do Reino de Deus.

Agora, um segundo "concílio de Jerusalém" implicaria a predisposição da Igreja em rever sua caminhada, e o convite ao mundo para se abrir ao Evangelho de Cristo, superando preconceitos e confrontos inúteis, e abrindo caminho para um novo tempo de reconciliação e de paz mundial.

Assim sonhava D. Helder. Ele vinculava seus sonhos a uma data, carregada de simbolismo, para dizer que estes sonhos ultrapassam as possibilidades concretas do nosso dia a dia, mas ao mesmo tempo começam a acontecer se lhes damos abrigo em nossas mentes e em nossos corações. Ele insistia na dimensão comunitária das utopias, alertando que um sonho que se sonha só, fica na ilusão, mas um sonho que sonhamos juntos, começa sua encarnação.

O "Ano centenário" é para voltarmos a sonhar como D. Helder, para nos comprometer com a realização concreta de suas grandes utopias. Apesar das nuvens carregadas de pessimismo que se abateram sobre o mundo no alvorecer deste novo milênio.

Em temos de borrascas os profetas precisam anunciar a bonança!

* Bispo de Jales

Mensagem de Dom Helder Camara
Escrito por Frei Betto

03-Fev-2009

Para: amigos e amigas

Queridos: estivesse entre vocês, a 7 de fevereiro comemoraria 100 anos de idade. Quis o bom Deus, entretanto, antecipar-me a glória de desfrutar Sua visão beatífica. Aliás, o Céu nada tem daquela imagem idílica que se faz na Terra. Nada de anjos harpistas e nuvens cor-de-rosa, embora a música de Bach tenha muita audiência.

Entrar na intimidade das três Pessoas divinas é viver em estado permanente de paixão. Arrebatado por tanto amor, o coração experimenta uma felicidade indescritível.

A propósito, outro dia, Buda, de quem sou vizinho, me contou esta parábola que bem traduz o caminho da felicidade: numa feira da Índia, entre tantos restos de frutas e legumes, uma mulher fitava detidamente o chão. Viram que procurava algo. Um e outro perguntaram o quê. "Uma agulha". Não deram importância. Porém, quando ela acrescentou que se tratava de uma agulha de ouro, multiplicou o número dos que a auxiliavam na busca.

Súbito, um deles perguntou: "A senhora não tem idéia de que lado da feira a perdeu?" "Não foi aqui na feira", respondeu a mulher, "perdi-a em casa". Todos a olharam indignados. "Em casa?! E vem procurar aqui fora?" A mulher fitou-os e retrucou: "Sim, como vocês procuram a felicidade nas coisas exteriores, mesmo sabendo que ela se encontra na vida interior".

O Céu é terno, o que não impede que experimentemos indignações. Jesus não fez a fome e a sede de justiça figurar entre as bem-aventuranças? Quando olho daqui para a Igreja Católica confesso que sinto, não frustração, mas uma ponta de tristeza. O papa Bento XVI não transmite alegria e esperança. Faltam-lhe o profetismo de João XXIII e a empatia de João Paulo II.

Padres cantores atraem mais discípulos do que aqueles que se dedicam aos pobres, aos lavradores sem-terra, às crianças de rua, aos dependentes químicos. Nas showmissas os templos ficam superlotados, enquanto nos seminários o ensino de filosofia e teologia costuma ser superficial.

A vida de oração não é estimulada, muitos buscam o sacerdócio para obter prestígio social e, por vezes, o moralismo predomina sobre a tolerância, o triunfalismo supera o espírito ecumênico. Até quando homossexuais serão discriminados por quem se considera discípulo de Jesus?

Alegra-me, porém, saber que as Comunidades Eclesiais de Base estão vivas e se preparam para realizar o seu 12º encontro inter-eclesial, em Rondônia, no próximo julho. Dou graças a Deus ao constatar que o CEBI – Centro de Estudos Bíblicos – conta com mais de 100 mil núcleos espalhados pelo Brasil, integrados por gente simples interessada em ler a Bíblia pela ótica libertadora.

Preocupa-me, entretanto, a polêmica entre os irmãos Boff. Tanto Leonardo quanto Clodovis são teólogos de sólida formação. Não considero justa a acusação feita por Clodovis de que a Teologia da Libertação teria priorizado o pobre no lugar do Cristo. O próprio Evangelho nos mostra Cristo identificado com os pobres, como ocorre na metáfora da salvação em Mateus 25, 31-46.

Francisco de Assis, com quem sempre me entretenho em bons papos, lembra que sem referência ao pobre, sacramento vivo de Deus, Cristo corre o risco de virar um mero conceito devocional legitimador de um clericalismo que nada tem de evangélico ou profético.

Tenho dito a são Pedro que sonho com uma Igreja em que o celibato seja facultativo para os sacerdotes e as mulheres possam celebrar missa. Uma Igreja livre das amarras do capitalismo, e na qual os oprimidos se sintam em casa, alentados na busca de justiça e paz.

Quanto ao mundo, lamento que a fome, por cuja erradicação tanto lutei, ainda perdure, ameaçando a vida de 950 milhões de pessoas e causando a morte de cerca de 23 mil pessoas por dia, a maioria crianças.

Por que tantos gastos em formas de ceifar vidas, como armamentos, e investimentos que degradam o meio ambiente, como pesticidas, desmatamentos irresponsáveis e cultivo de transgênicos? Por que tão poucos recursos para tornar o alimento – dom de Deus – acessível à mesa de todos os humanos?

Ao comemorarem meu centenário, lembrem-se dos princípios e objetivos que nortearam a minha vida. Malgrado calúnias e perseguições, vivi 91 anos felizes, pois jamais esqueci do que disse meu pai quando comuniquei a ele minha opção pela vida sacerdotal: "Filho, egoísmo e sacerdócio não podem andar juntos".

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros.

0 Comments: