sexta-feira, 27 de junho de 2008

A estética como porta de entrada para o ensino de filosofia

A estética como porta de entrada para o ensino de filosofia

A estética, proposta neste trabalho como pórtico para o ensino de filosofia, é a reflexão sobre as diversas formas do belo. O vocábulo grego aisthetiké refere-se a tudo aquilo que pode ser percebido pelos sentidos. Significa experiência, conhecimento sensorial, sensibilidade.

A arte precede as doutrinas, os sistemas e as teorias elaborados sobre ela. A estética supõe a arte, e como parte da filosofia, torna-se realidade apenas no século XVIII. Quem utilizou o termo estética pela primeira vez foi o alemão Alexander Baumgarten (1714-1762) por volta de 1750. Ele o utilizou no sentido de teoria do belo e das suas manifestações através da arte.

Mas, o que é estética? Croce, no início do século XX, define a estética como A ciência da arte que... não tem por função, como se pensa em algumas concepções escolares, definir a arte uma vez por todas e tecer sua trama conceitual de forma a cobrir todo o campo dessa ciência; ela é apenas a reorganização permanente, sempre renovada e cada vez mais rigorosa dos problemas aos quais, segundo as diferentes épocas, dá lugar à reflexão sobre a arte, e ela coincide perfeitamente com a solução das dificuldades e dos erros que estimulam e enriquecem o progresso incessante do pensamento. 1

A história da estética é a da sua busca incessante pela autonomia. A arte parece ter existido em todos os tempos e em todos os lugares, desde as mais remotas eras conhecidas pelo homem. Então, indaga-se por que a estética, como reflexão autônoma sobre a arte, só aparece no século XVIII? Como explicar o seu surgimento tão tardio? É importante observar que uma das causas dessa autonomia tardia pode ser porque econômica e politicamente os artistas só se libertaram das tutelas religiosas, monárquicas e aristocráticas também tardiamente. O próprio artista liberta-se também tardiamente da sua condição de artesão dependente, ora do príncipe, ora do religioso ou mesmo de sua corporação. Por muito tempo o ofício do artista é considerado apenas uma atividade prática, manual, em oposição às atividades intelectuais. É longo o caminho e a luta dos artistas para se libertarem das artes mecânicas para que sua atividade seja reconhecida como arte liberal. Só por volta do século XV é que os artistas, na sua maioria, passam a assinar suas obras. Em compensação conta-se que quando um pincel escapa das mãos de Tiziano, é o imperador Carlos V que se abaixa para pegá-lo. A estética só pode nascer depois de o sujeito, a partir de Descartes, afirmar-se como dono de suas representações, fazendo a passagem da fé para a razão. Na verdade, trata-se de uma nova profissão de fé, a fé na razão. Essa passagem da tutela para a liberdade e do anonimato para o reconhecimento não se dá como por milagre, e nem acontece de forma absoluta. É preciso lembrar que a partir do renascimento, se o artista começa a se libertar dos seus patrocinadores, ele passa a depender do mercado e do marchand, quando o valor de troca, pelo comércio, começa a prevalecer sobre o valor de uso da obra de arte, e a crítica passa a exercer o controle. Estabelece-se, portanto, mais a autonomia da crítica que, por sua vez, realiza-se na dependência das condições materiais dadas historicamente. O cliente passa a exercer o papel que era dos empregadores, pela mediação do marchand 2. A estética, por sua vez, como reflexão, pode auxiliar o homem na luta pela emancipação em relação às tutelas da teologia, da metafísica e da moral, assim como das tutelas social e política. Pode-se dizer, portanto, que há uma relação dialética em direção à emancipação por parte da arte e da sociedade.

A arte pode ser também "catequese". O papa Gregório Magno, na segunda metade do século VI, afirmou que a pintura podia servir ao analfabeto tanto quanto a Escritura servia a aqueles que sabiam ler 3. Portanto as pinturas deveriam apresentar as mensagens bíblicas e teológicas da maneira mais simples e clara possível.

A arte tão condicionada pela magia, pela religião ou pela política, trilha um longo caminho em direção a sua emancipação, assim como a estética faz o mesmo caminho. No século XVI os vínculos que uniam a ciência e a arte num conhecimento homogêneo diminuem. A idéia de autonomia da arte começa a sugerir que ela é também independente da ciência e do saber. Para Jimenez, várias condições são necessárias para que a estética se imponha como um domínio de reflexão específica. Nenhuma "estética filosófica" poderia ter nascido sem a constituição das idéias de criação autônoma e de sujeito criador. Era preciso também definir as relações entre a razão e a sensibilidade, meditar sobre o gosto, sobre a experiência individual e esforçar-se por determinar o papel da razão no domínio específico da arte, distinto da ciência e da moral. No interior desta esfera estética autônoma, o julgamento do gosto, individual, subjetivo, pode ser exercido livremente sem ter de justificar-se junto a instâncias "superiores", como a teologia, a metafísica, a ciência ou a ética. Pelo menos, em princípio.

Michelangelo Buonarroti, cognominado "O Divino", é o primeiro exemplo do artista moderno, solitário, dominado por um impulso próprio que não admite interferências na sua produção artística, nem mesmo de seus contratantes, sejam eles, príncipes ou papas.

A conquista da autonomia da estética que começa a se consolidar no século XVIII, inscreve-se no movimento mais geral de libertação em relação à ordem antiga. O século XVIII é o século da afirmação do indivíduo como sujeito, das declarações e da consciência dos seus direitos. A autonomia plena, real e completa nunca se realizou nem se realizará porque a arte, além de ser um produto datado e, portanto, histórico, acabará sempre "servindo a outros senhores", como o rei, o cardeal, o revolucionário ou o mercado. E, principalmente, porque a autonomia do sujeito também nunca se realizou. Mesmo assim, a modernidade conhece alguma autonomia que torna possível, inclusive, Art pour l'art. É importante observar que a autonomia da estética caminha junto e reforça também a autonomia de uma reflexão crítica, seja em relação à arte, à sociedade e à política. Estética, ética e política fazem parte da mesma formação filosófica. A educação pela beleza, que permite ultrapassar o estado sensível e subir ao estado estético permite chegar ao estado político, questionando até mesmo a dominação, num impulso para a autonomia do cidadão. A experiência do belo é fundamental por desenvolver a capacidade de relativizar as estruturas e dinâmicas de dominação econômica, social e política. O acesso às obras de arte e à crítica da estética permitem, por exemplo, na sociedade contemporânea o olhar crítico e o questionamento da metástase do mesmo, tanto nas imposições comerciais da cultura mediatizada, quanto na "repetição" das mesmas formas de dominação de micro ou macro poderes. Diante dos horários gratuitos de propaganda política no rádio e na televisão, aquele que teve uma sólida formação estética, pode sentir-se, talvez, o personagem da litografia O Grito de Edvard Munch (1895), que manifesta uma emoção que transforma toda a fisionomia, demonstrando que algo de terrível está acontecendo ou para acontecer.

As obras de arte servem à filosofia por se constituírem, segundo Benjamin, em condensações de experiências passadas capazes de iluminar o futuro se conseguirmos decifrar sua significação simbólica e alegórica 4.

Para Adorno, a arte somente pode revestir-se de um sentido na negação do mundo presente: é a sua estética negativa. Para ele, Auschwitz demonstra que a cultura ocidental não conseguiu impedir a barbárie, prevenir o inominável. Será possível compor um poema após tamanha decadência do ser humano? Mas, o que resta de bom no ser humano não pode abdicar facilmente diante da barbárie. Nos dias em que escrevo estas linhas, a barbárie age nas ruas do centro de São Paulo, eliminando mendigos, "limpando" as ruas de todo o diferente que as enfeia. Ao pensar na reação de Munch diante da decadência e das misérias humanas, ao dar o seu Grito, mais surpreso ainda fico ao ler no jornal do dia que uma das versões de sua obra O Grito acaba de ser roubada do museu Munch, em Oslo, na Noruega.

A filosofia que não abdica diante da barbárie, faz coro com a arte para combatê-la e, se possível, destruí-la. A filosofia pode exumar as obras de arte e, em especial, a pintura das salas e corredores frios de museus e galerias para torná-las instrumentos de provocação do pensamento crítico sobre o homem e o seu mundo.

De Bruegel a Sêneca: arte e ensino de filosofia
Após uma leitura da história da arte e um estudo sobre alguns artistas, pareceu-nos que a obra de Pieter Bruegel poderia servir como um exemplo do potencial pedagógico da pintura para o ensino e a aprendizagem da filosofia. Algumas obras desse artista dos Países Baixos, do século XVI, levam à reflexão sobre os princípios da filosofia estóica. Para fazer um diálogo com Bruegel, optamos pelos textos de Sêneca, por ser um dos grandes representantes do estoicismo, e pela maior facilidade de acesso à sua obra.

Para ler o conteúdo desta excelente conferência na íntegra, clique no arquivo abaixo:

Artes e Ensino de Filosofia.doc
(formato MS Word - 214 KB)

1 Croce citado por Marc Jimenez, 294-295.
2 O primeiro marchand de belas artes de que se tem notícia é o florentino Giovanni Battista della Palla, no começo do século XVI.
3 Estrabão já dissera: Pictura est quaedam litteratura illiterato... Pictura et ornamenta in ecclesia sunt laicorum lectiones et scripturae. Cfr. Hauser, 129.

4 In Marc Jimenez, O que é estética?, 335.

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