quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Contra o Sensacionalismo

Contra o Sensacionalismo*

Robson Sávio Reis Souza**

O aumento estrondoso da criminalidade violenta nos últimos anos trouxe para a agenda social a questão da (in) segurança pública. Outrora assunto restrito a poucos atores, agora a temática alcança o centro das discussões, numa sociedade aflita em meio a um estrondoso incremento da violência e da criminalidade. As últimas pesquisas de opinião apontam que o problema da violência é líder absoluto entre as preocupações dos brasileiros.
A mídia, percebendo a importância do momento histórico (e principalmente o poder de vocalização dessa demanda pela classe média – sua maior consumidora) tem aprofundado as discussões sobre a questão, pautando de forma cada vez mais constante a cobertura acerca da segurança pública.
A violência (e seus efeitos perversos) fragiliza as instituições sociais. Isso sem falar na corrupção – que atinge todos os níveis da administração pública produzindo uma generalizada falta de credibilidade e de confiança nas autoridades. Esses dois ingredientes explosivos têm motivado muitos indivíduos a defenderem a tese da auto-resolução dos conflitos por meios ilegais, e o mais grave, a querer fazer justiça com as próprias mãos.
Porém, todos que lidam com o fenômeno da violência devem compreender sua complexidade e a dificuldade no domínio de todas as suas variáveis. Outro problema é a confiabilidade dos dados produzidos sobre crimes. É difícil construir indicadores estatísticos representativos e confiáveis. Daí se pode entender por que pesquisadores e operadores da segurança pública têm chamado a atenção para a necessidade de produzir estatísticas confiáveis e garantir a transparência na divulgação dos dados sobre a violência.
Ademais, a representação da violência pela mídia altera a percepção que temos do fenômeno, pois a cobertura nem sempre é representativa do universo de crimes e sim dos eventos extraordinários e muitas vezes pontuais. Neste contexto, a mídia pode se tornar uma das mais contundentes formas de se propagar e, até certo ponto, exaltar a violência.
Sejam os consumidores da notícia ou os operadores da segurança pública, todos devem compreender que a cobertura do cotidiano violento das grandes cidades não é tarefa fácil. Por trás de eventos violentos, várias questões estão ocultas, e dificilmente podem ser contempladas em cada matéria ou reportagem da mídia. Ademais, é mister entendermos que na análise da questão não existe verdade absoluta, nem ponto de vista inquestionável e irrefutável.
Apresentamos, a título de ilustração, uma síntese da complexa teia de fatores intervenientes no fenômeno da violência e criminalidade.
Para tanto, usamos o modelo proposto pelo cientista francês Jean-Claude Chesnais, conceituado demógrafo e especialista em violência urbana. Ele traçou um estudo sobre a violência criminal no Brasil, apontando seis causas como fatores responsáveis pela atual situação:
. Fatores socioeconômicos: miséria, agravamento das desigualdades;
. Fatores institucionais: insuficiência e incompetência do Estado, crise do modelo familiar, recuo do poder da Igreja;
. Fatores culturais: problemas de integração racial e desordem moral;
. Demografia urbana: as gerações provenientes do período da explosão da taxa de natalidade no Brasil chegando à vida adulta sem muitas referências éticas; e o surgimento de metrópoles sem a mínima infra-estrutura, que receberam uma fortíssima migração nas últimas décadas;
. A mídia, com seu poder, que colabora para a apologia da violência;
. A globalização mundial, com a contestação da noção de fronteiras; e o crime organizado (narcotráfico, posse e uso de armas de fogo etc);
. Acrescentaria outro fator, característico e específico das grandes cidades brasileiras. A organização do tráfico de drogas (disputas pela ampliação de espaço e poder, guerra entre gangues) e suas conexões com outras modalidades de crimes (contrabando, lavagem de dinheiro, corrupção de agentes públicos etc.).
Ora, fica evidente a complexidade que envolve o fenômeno da violência. E, por conseqüência, a dificuldade, ou a quase impossibilidade, de o profissional da comunicação, cobrindo o factual, abordar todas essas questões na apresentação de cada notícia sobre o tema.
Existe uma tradição muito arraigada dentro das redações de que a cobertura dos temas envolvendo a violência e a criminalidade é “de polícia”. Com o processo crescente de aprofundamento das discussões sobre os problemas da segurança pública, esse tipo de postura precisa ser revisto. Nessa empreitada, todos os atores envolvidos na temática (jornalistas, operadores da segurança pública e pesquisadores) devem se despir das “verdades absolutas” que os circundam, caminhando na direção de uma nova relação entre as partes, baseada principalmente no direito de todos a uma informação qualificada, transparente e ética sobre assuntos que envolvem os fenômenos da violência e da criminalidade.
As editorias de polícia continuam sendo, com raríssimas exceções, os berçários e os cemitérios das redações. É preciso que os donos e os profissionais da mídia compreendam, de vez, que se foi o tempo em que os crimes eram “assuntos de polícia”. São fatos que se encaixam na esfera da segurança pública, portanto, influenciam a qualidade de vida dos cidadãos e, como tal, merecem tratamento qualificado e tão nobre quanto aos outros assuntos.
Considerando o papel decisivo dos meios de comunicação nas democracias para o agendamento de políticas públicas, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes decidiu realizar um diagnóstico sobre como os jornais cobrem a violência no Brasil, em 2004.
Ao analisar os 2.514 textos, os pesquisadores perceberam que “os jornais não cobrem a violência com a mesma intensidade. O perfil dos textos analisados também indica que os jornais têm abdicado de enriquecer a cobertura sobre violência e segurança com alguns tipos de abordagem. O espaço que os veículos analisados dedicaram a textos opinativos sobre estes temas foi muito reduzido: durante o período da pesquisa, houve pouquíssimos editoriais (1,4%), artigos (1,2%) e colunas (0,3%) sobre o tema. Mais de um quarto (27%) da cobertura é composta de pequenas notas informativas, sem qualquer tipo de contextualização”.
Sobre os principais temas tratados pelas redações, a pesquisa concluiu que “as forças de segurança – nas quais se incluem as várias corporações policiais (Federal, Civil, Militar e Técnica), as Forças Armadas e as guardas municipais – são as protagonistas do noticiário, sendo o assunto de 40,5% dos textos. O outro tema dominante é o ato violento em si, assunto de 21% das matérias. Os desdobramentos e repercussões desses atos somam 16,2% - ou seja, 37,2% da cobertura gira em torno de crimes. Mas a análise das matérias deve ser considerada não apenas por aquilo que foi abordado, mas também pelo que não foi. Temáticas centrais como a violência enquanto fenômeno sociocultural – político (3,3%) e direitos humanos (2,4%) aparecem muito pouco. Também chama a atenção o pequeno número de reportagens e artigos baseados em estatísticas e pesquisas”.
A forma e conteúdo de exposição dos vários tipos de violência pela mídia devem ser questionados. Obviamente, não estamos tratando aqui de qualquer tipo de censura; ao contrário, defendemos uma interlocução cada vez mais consistente entre os profissionais da comunicação, pesquisadores do
tema e operadores da segurança pública.
Porém, somos cônscios de alguns exageros. Por exemplo: uma pesquisa de Unesco sobre a exposição da violência na mídia e suas repercussões na vida das crianças apontou que a função da mídia na percepção e prática da agressão é apresentada em contexto compensatório. Dependendo dos traços de personalidade e das experiências cotidianas das crianças, a violência na mídia satisfaz diferentes necessidades: “compensa” frustrações e carências em meio a ambientes problemáticos, ao mesmo tempo em que oferece “emoção” aos infantes que vivem em áreas menos problemáticas. Apesar das inúmeras diferenças culturais, os padrões básicos das implicações ligadas à violência na mídia são semelhantes em todas as partes do mundo. Assim, a onipresença da violência na mídia estimula muito mais as ações violentas para a resolução de simples conflitos cotidianos do que atos pacíficos e de respeito aos outros a si mesmo.
A mídia deveria ser o espelho fiel das contradições e conflitos existentes na sociedade. Evidente, portanto, que na sua pauta apareça a questão da segurança pública como uma das principais demandas de discussão da sociedade brasileira na atualidade. Ponto-chave: profissionais da mídia, operadores de segurança pública e pesquisadores do tema devem conhecer os limites e os interesses que envolvem o tratamento da temática da segurança pública. Nesse terreno não há espaço para improvisações e amadorismos.
É preciso compreender, também, as dificuldades nas abordagens de uma temática tão densa e complexa, como já exposto anteriormente. Portanto, especializar-se nesse tipo de cobertura seria o desejável e muitos profissionais da imprensa têm percorrido esse caminho. Fundamental que a divulgação e a apuração das informações acerca de estatísticas criminais sejam rigorosamente avaliadas: quem produz a notícia deve levar em conta a subnotificação de vários tipos de ocorrências; os interesses políticos que envolvem a divulgação das notícias; os vieses evidentes em análises feitas por operadores e especialistas.
Uma notícia irresponsável pode causar danos irreparáveis a uma comunidade. Por exemplo, o simples fato de se noticiar um aumento de crimes num determinado bairro baseando-se na percepção da população, sem verificar com mais acuidade o que essa situação pode acarretar: diminuição no preço
dos imóveis naquele local; deterioração da qualidade de vida da população em virtude do medo e do aumento da percepção da violência local; fragilização das relações sociais, entre outras questões. Por outro lado, sonegar, omitir ou maquiar informações sobre crimes pode significar efeitos tão perversos ou até piores do que os citados acima, incluindo riscos objetivos para a vida das pessoas.
Finalmente, o papel da imprensa na cobertura da segurança pública é de fundamental importância para o aprimoramento das políticas públicas nessa área. Apesar das eventuais limitações, observamos que a mídia tem se esmerado no tratamento da temática, o que muito contribui para a melhoria das relações entre os operadores da segurança pública, pesquisadores e os profissionais da comunicação.

* Fonte: artigo publicado no Jornal Estado de Minas, dia 28/07/2007.
**Pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da
UFMG e professor da PUC/MINAS.

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